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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Outono na Terra

  Na Terra o Outono doura pouco. Não há boulevards europeias flanqueadas de árvores centenárias perdendo vigor, entregando cor aos passeios povoados de gente.
A Terra é ela própria um tapete de cores, uma rica manta de retalhos com raízes milenares a querer pouco saber de enfeites. O chão cobre-se de azeitonas que caem como berlindes gordos e escuros das oliveiras; enche-se de ribeiros improvisados nas valas ainda pouco profundas dos caminhos antes ressequidos pelo braseiro estival, solos de sulcos marcados, rasgos cruzando uma superfície seca e rugosa como o rosto das velhas.

  Não adormece a Terra no Outono, prepara-se antes para viver, agora que há fartura e que a água vem benzer os de cá e o que os rodeia. Oferece-lhes farfalhudas couves, opulentas laranjas, bagulhentas romãs, boletas saltando à frente dos pés na beira dos caminhos.

  A Terra guardou-se, noiva ansiosa mas discreta, para os primeiros ares de frio a varrer as casas brancas baixinhas, de soleiras lavadas pelas gotas da cacimba. De Verão era caseira esta Terra. Escondia-se virginal, dentro das grossas paredes caiadas sem janelas que não fossem postigos para enxotar o calor. Deixou a timidez nos meses quentes e veio fazer-se farta, colorida, mais viva que nunca no Outono que lhe devolveu a vida. Que a emprenha de frutos, água, sonhos a renovarem-se e uma esperança ténue mas firme de que com o virar do ano, a vida muda, a jorna encurta, a Terra se renova.

  Vê-se já bem perto, na fímbria delicada dos dias pequenos, o fumo que sai da chaminé de todas as casas alvas, cheiro de morcela ou chouriça a assar nas brasas, a chocolateira a fazer-lhe companhia dando sinal de vida no borbulhar do café negro cujo odor já se vai espalhando e confundindo com o da família.

  Não conhece a moda das cidades esta Terra. Está bem assim. Chegam-lhe novas de céus distantes, dizem que há mar no Norte e aviões que voam 24 horas e não vêem o mundo acabar. A Terra aconchega-se.
Bateu bolo, amassou pão, casou as raparigas. Fechou-lhes delicadamente a porta e deixou-as entrar em casa de braço dado com aquele homem novo que é um par de braços que a amparem até ao fim do ciclo. Benzeu-lhes a porta. Sentou-se ao lume e deixou que o Outono viesse.

  Passo a passo, uma brisa de cada vez, ao longe os últimos pássaros ecoam em despedidas. Preparou-se tudo e a Terra está como a deixaram e nunca mais a mesma. É este o consolo dos que nela vivem: o sentimento de que o mundo gira e encaixa cabendo todo nas ruas da Terra.


https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/


                https://www.youtube.com/watch?v=HUEjTaF6kjk&feature=share

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Antónia e os seus meninos

  A Antónia queria muito aos seus meninos. Criava-os a mel e sopas de leite. Fazia rendinhas para rematar as golas e as bainhas dos vestidos das meninas, passava goma nas camisas que os meninos haveriam de usar na missa ao domingo.
Antes de dormirem, preparava água morna para lhes lavar os pézinhos delicados, os dedos gordinhos, punha-lhes pó de talco nas preguinhas do pescoço e das pernas. Cheirava-os, penteava-lhes os cabelos. Cem escovadelas pelo menos em cada uma das meninas. Uma trança grande a pender das costas de cada uma delas. 

  Os lençóis estavam brancos, imaculados, corados ao sol da Terra. O da manhã apenas porque o do meio dia fazia-lhes manchas amarelas e isso seria impensável. 
Engraxava os botins, encerava-lhes os atacadores para que fizessem um laço direito. Costurava, cerzia, calções, vestidos, camisas, lencinhos com as iniciais de cada um. Entre as dobras da roupa nas gavetas, colocava raminhos de alfazema nas das meninas e de rosmaninho no dos meninos. Não os deixava ir para a escola sem verificar bem o comprimento e a higiene das unhas , o asseio da roupa, o brilho dos sapatos: era o que mais faltaria, os seus meninos em desalinho! O falatório que não seria!

  Subia cedo antes do romper do dia às courelas do monte para ir buscar o leite mais fresco ou um queijinho atabafado, envolto em mil cuidados, para o pequeno almoço.
Se lhes subia alguma febre, já não dormia a Antónia. Noites a fio de olhos esbugalhados pousados no sono ardente do seu menino ou na testa em chamas da sua menina.
Ninguém na Terra os via pela hora da calma. Queriam-se branquinhos e sem mancha os seus meninos. Segurava-os pela mão até que aprendessem os primeiros passinhos, carregava-os ao colo para que não os incomodassem as terras barrentas, os cascalhinhos da estrada, as caganitas de ovelha.
Benzia-os à lua, mandava rezar novenas quando os via aflitos.

  Fez-se velha a Antónia, mais velha que a Terra toda, que o círculo longínquo das planícies e dos olivais ao longe, na espera constante pelo regresso de alguns dos seus meninos.
Foram indo para a cidade uns, para o estrangeiro outros e a Antónia ficou, segurando as paredes do monte, mandando caiar, podar, amanhar tudo todos os anos não fosse algum dos meninos entrar-lhe pela porta dentro de surpresa, matar-lhe as saudades que a matavam.

  Não a puderam salvar os seus próprios filhos. Eram para lá de meia dúzia, criados a fome e a ausência pela avó, uma comadre ou uma vizinha. Batiam-se nus e descalços pelas côdeas dos bolos na Travessa do Forno, traseiras da padaria. Morreram dois de barriga inchada de ar ou de maleita a que não procurou dar nome.
Escola se a conheceram alguns foi pela mão da Mestra que os atraía com a promessa de um naco de pão e uma malgazinha de leite.

  Também eles se foram, um após o outro: casaram, fizeram outros meninos que juraram, iriam ter mais sorte do que eles, filhos esquecidos de uma mãe que não usava o título entre a sua gente. 
No dia em que a encontrou o Zé da Inácia que por sua ordem, ia ao monte de duas em duas semanas para cuidar da horta e dos jardins, mandou que se avisasse uma filha, a mais novinha que por ali ficou por se ter casado com o viúvo dono da mercearia (promessa de sustento?).

  Logo a notícia se espalhou como um rastilho pelo sangue dos da Antónia. Vieram sem rendas, golas engomadas ou sapatos engraxados. Vinham sem saber bem a que vinham ou quem iam encontrar naquela caixa de madeira comprida que colocaram no centro da casa que lhes diziam ser a sua. Mas não conhece casa quem não encontrou o calor no colo da sua mãe.

  Dos seus meninos bonitos, todos engenheiros, doutores, bem casadas, gente graúda da Terra mas há tanto fora dela, nem o vento ouviu falar. "Finou-se a criada, Deus a tenha!" disse a matrona, lá longe numa cadeira perto do mar.
Os filhos esses, choraram de rijo, fizeram exéquias, assumiram um luto negro fechado como se deve a um parente. 

  Pois na Terra o sangue é como um ribeiro no seu caminho: salta obstáculos e desvia-se muitas vezes, mas acaba sempre por juntar-se ao leito. 
in https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/

segunda-feira, 5 de março de 2018

Sentar na Terra


 "Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado (...)"

                             Chico Buarque, Construção

 Sentar na Terra é acomodar o corpo para as longas esperas, os calores infinitos, a lentidão dos ponteiros e o rumor do silêncio que invade a gente.

  Há um banquinho corrido, bom para sentar, colocado gentilmente sob a frágil parreira diante da casa. Pode ser uma cadeira, esta foi o tio Domingos Marceneiro quem a fez, o Inácio Cesteiro quem lhe fez dançar, entrecruzar, as tranças de palhinhas do assento para formarem uma rendinha apertada, quase uma mantilha como a que as moças levam pelas cabeças às missas no Domingo.

  Parou esta cadeira à pouca sombra da ombreira da porta da casa, logo abaixo da lista azul da pequenina janela da frente, buinho claro no assento, costas brancas a casar com a alvura da parede que lhe dá encosto. Os quatro pés a sustentarem um corpo robusto que segurou à vez avós, filhos,  netos, choros de amor e de dias fúnebres. Que estalou do sol a querer penetrar-lhe as frechas e da chuva a inchá-la como às laranjas, azeitonas, bagos de uva.

  Está viva a cadeira, como há vida na casa que a pariu, assente no chão da Terra que é um círculo onde se vive, se cresce, se morre e a intervalos se descansa. Cadeira onde deitei a cabeça no colo da minha madrinha quando já não pude suportar os laços apertados do vestido que me cingia a cintura no dia da minha confirmação; cadeira aonde subi para chegar ao ninho de andorinha entalado entre as telhas, um tosco punho fechado de barro de onde caíram três filhotes que de outro modo não voltariam para lá; cadeira de onde vi chegar tantas e tantas vezes o carteiro com as cartas escritas, sobrescritos pesados das saudades da Terra pelos de cá que tiveram de calcorrear o globo em busca de um dia voltar; cadeira onde sentada junto da Avó, aprendi o primeiro ponto, a primeira laçada da malha; onde descansei vinda de um qualquer baile numa qualquer juventude, infância, que merecem elas próprias assento cativo na memória dos dias; a cadeira onde namorei, chorei, sorri, ri sem parar, vivi...

  Uma cadeira que me deixou ser e que vive junto à casa, sendo dela mas ainda mais.
Dando aos da Terra a certeza calma, serena de que sejam quais forem as passadas, o dia, a duração da jorna, ela aí está, firme, eterna, quatro pernas e um assento onde o corpo repousará.
Crescerá.
Será Terra.

in https://goo.gl/images/Di23k1credit: arturpastor





quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Chove Terra

"Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains within the sound of silence"
                                      
                                 Simon & Garfunkel, The Sound of Silence



Chove de rijo na terra. Chicotes de água açoitam as margens das ribeiras, os açudes ressequidos pelo abraço de brasa, opressivo do sol. Saltam, salpicam gomos cheios de água prenhes de arco-íris, espelhos transparentes do céu que os mandou.Vêm redondos, perfeitos como olhos de perdizes a invadir a planície e esparramam-se desenvergonhada e desordeiramente pelas fendas no solo, chegando ao seu fundo numa fusão infinita, cega e fundamental. 

  A Terra conhece água. Os que não são dela, dizem que não é assim. Não é verdade. Terra é água e dela vive. Em torno dela, isto é. 
Falta, abunda. Tira, dá. Destrói, cria. Com água se inundam os olhos de todas as Mães da Terra quando o peito se abre em sulcos como os do chão que pisam. Água é o que corre pela testa, por debaixo das boinas, lenços, de todos os Homens que não conhecem estações ou dias de cores diferentes. Água para parir, água para lavar, água para ungir, benzer, inundar de vida e de sagrado (e não é isto falar do mesmo?). 

  Água nas cantarinhas a saber a barro, tão fresca, tão renovada que se diria estar o dito utensílio em lugar de fonte jorrando água constante do centro da Terra. Água em baldes de lata atirados ao ar, desenhando curvas liquidas em redor das soleiras das portas que depois se esfregam com panos, vassouras até que brilhem muito mais que os astros e as entradas das vizinhas. Água para nadar, como se veio ao mundo, sentindo os barbos, bogas, achegãs roçarem as pernas, e os pés escorregando nas pedras musgosas a fazerem leito. 

  Chove com força, como um látego pesado no dorso da Terra. É tudo ou nada deste lado do rio. Este Sul que é mais sentido do que geográfico tem os extremos de um território inóspito mas apetecível; os desvelos de uma mãe carinhosa com mãos rugosas, ásperas mas com perfume de leite e mel, um toque de hortelã e poejo. Sul que sente ainda o cheiro do oceano e que se diz plano mesmo do seu ponto mais alto. Que deixa vir água do céu e a recebe como a um deus descido do Olimpo dignando-se a caminhar na Terra. 

  Só que quando chove neste Sul, é de verdade. Com uma intensidade, uma ânsia desconhecida noutras paragens. Uma vontade imensa de absorver a água toda que se não vier carregada, gorda, pesada, depressa desaparece na imensidão, nos vastos caminhos de terra da Terra.

  Lava-te pois Terra, faz lama nas ruas ladeadas de paredes brancas caiadas, abre as bocas dos ribeiros que as circundam e faz-lhes salpicos só de pirraça. Obriga as moças a calçarem as botas de borracha para irem à venda ou à missa, os rapazes a abrigarem-se no telheiro da escola ou os velhos a recolherem ao lar, por dentro do útero da cozinha de onde parecem jamais querer sair. Faz-te nova, avança. Lavra o teu chão e prepara-te para lançar as tuas sementes. Mais tarde as mandarás com beijos das abelhas nas flores, pelos bicos dos pássaros celestes a Terras fora de ti. 

  Sabes que é assim que se recomeça. Que se renasce. Água e Terra fazendo Vida. 


in: https://nit.pt/out-of-town/back-in-town/dark-sky-chuva-estrelas-alqueva
Créditos: http://www.miguelclaro.com/wp/ 

domingo, 6 de agosto de 2017

Laura e o Amor na Terra

      Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... 
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. 
Mas porque a amo, e amo-a por isso, 
Porque quem ama nunca sabe o que ama 
Nem por que ama, nem o que é amar...
Alberto Caeiro
  Às vezes Laura acordava com a sensação estranha e maravilhosa de que a manhã nascera para ela. Que, rebentando as frinchas das janelas, os intervalos do postigo e as dobras dos cortinados de renda vinha ansiosa, lamber-lhe o rosto, a manhã. "Sou tua" parecia dizer-lhe. "Toma-me e expande-me, transforma-me em dia claro, em invólucro da Terra."
Laura voltava a fechar os olhos e deixava-se usufruir um pouco mais, só um tudo ou nada, da languidez boa de se sentir amada, tocada de novo pela luz conhecida e perfeita da manhã.

  Janela aberta, portas em abraços para fora, Laura sorvia com cada poro, cada tira de pele o ar da manhã na terra. Que cheira a urze. A palha seca. A estrume. A dentes de leão e alfazemas. Cheira a roupa batida nas pedras da ribeira e a corar ao sol dos quintais. Cheira à canela e ao mel que se derretem por dentro dos bolos no forno de pedra na padaria.

  Cheira também a barro, namoro da terra com a água da chuva. E tem sabor. Sabor da poeira que se eleva dos caminhos, do ar metálico antes de soar o primeiro trovão ou dos restos de cinzas brancas do lar que se levantam e povoam os corpos, as línguas, fazendo lembrar que um dia, já foram brasa.

  Sentia Laura que a manhã lhe falava. Que lhe contava dos que foram e dos que estavam para chegar. De quem seriam os reis do baile da sociedade esse ano e da chegada do míldio à vinha do Monte Novo. Dos dias que se seguiriam e se mostravam inteiros aos olhos e aos ouvidos atentos de Laura que tantos já diziam ser virtuosa.
Sem compromissos reais com a Terra, Laura assumira no entanto uma ligação eterna, matrimónio indestrutível com o ar da manhã. Desde gaiata que ao levantar,punha um dedito no ar, fechava os olhos e tentava adivinhar a direcção do ar da manhã, o lado de onde viriam as novidades, o seguimento do dia pelo que conseguia ver primeiro dele com os olhos do coração.

  Ah o peito, o peito! Pudesse Laura expandir-se como os caminhos da Terra, lonjuras inexequíveis para os que sobre ela não caminham, seria pelo peito que a sua estrada começaria. Para Laura tudo era novo ou regenerado como os dias.No peito de Laura vivia Amor como vivia a luz da manhã, o ar fresco do orvalho e os tons dourados, roxos, vermelhos com que o seu mundo se erguia. Começar de novo. Ser nova todos os dias e os dias todos. 

  Acorriam a Laura todos os que de uma forma ou outra já tinham desistido. Ou de quem já todos haviam desistido. Começar, recomeçar. Tombar, levantar. Pedras, rochas, solos rugosos e secos a fazerem-se terra fértil, veios de vida com um nadinha de manhã sobre eles. Era tudo quanto bastava. E era o ar da manhã que os curava, dizia Laura. Ela própria um episódio confuso do Tempo que não sabia mais modo nenhum de lhe chegar, de a prostrar.

  Laura dava. E do dar, recebia e era abundante como a primavera e o sol da manhã. Também caía chuva. Muitas e muitas vezes colava-se o avental de Laura ao seu corpo perfeito, glorificando as suas formas, e ela sorria, satisfeita, dando graças pelo choro Divino que lhe permitia lavar, semear, colher, crescer, ser mais Laura. Outra vez começar, com as manhãs. Ser luz com elas. 

  Quarenta ciclos de doze meses de manhãs novas, mãos dadas, esperança orgulhosamente pendurada ao peito, morreram numa noite cerrada de um Inverno gelado. Não havia  estrelas, a lua escondera-se sob o nevoeiro cerrado e o corpo perfeito de Laura, cobrindo o espaço da cama, parecia ter o peito mais largo, os ombros expandidos, os ossos alargados, as narinas desesperadamente abertas. 

  Choraram por Laura na terra. Sabiam que a sua manhã não chegara e que nenhuma mais teria a luz que ela lhes emprestava. Calou-se pois o povo. Enviuvara a manhã.


por: https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/



domingo, 2 de abril de 2017

Terra Chão

"Vamos lá saindo
Por esses campos fora
Que a manhã vem vindo
pelos lados da Aurora..."

           Moda Popular Alentejo



A Terra chama ao chão. Vai assim de mansinho, com um jeitinho quase ausente, um sussurro ao de leve, um ar de que não quer, soprando na vida dos que vão, dos que ficam e querem ir, o ar quente que se ergue do chão em ondas ascendentes de calor opressivo ou frio contundente.

Irremediável o chão da Terra. Um sempre, sempre a tocar constante. Ao de leve primeiro, como um roçagar de dedos na pele de quem se quer, em violentos chamados e invasivos clamores depois, quando já nada mais resta senão o desejo do chão.

O chão seco atravessado de fendas, as veias da Terra, onde pousam passarinhos e nascem inusitadas flores, mimosas, papoilas, chagas-de-cristo. O chão que se converte em mar, que inunda o espaço entre o nada e o lado nenhum, que levanta um lençol de água a cobrir velhas azinheiras, oliveiras, carvalhos escuro.

O chão da Terra não tem nome. Conhece-se pela memória de cheiro que de repente nos invade as narinas, rebenta o coração. Não tem idade. Atinge em cheio os homens maduros, as senhoras da sua casa, as velhas exiladas e os meninos sem escolha. Ser do chão e ser da Terra são uma e a mesmíssima coisa. Uma coisa que é una com os passos dos que partem ou dos que com algum fio quebrado pelo caminho, são pertença da Terra de qualquer modo.

São do chão os que se emocionam ao pisá-lo. Ao ver-lhe as lonjuras, os rasgos, curvas discretas ou nalguns casos acentuadas, a desembocar em linhas finas de água ou vales, planícies louras ou roxas. Os que o amam recebem esse Amor de volta, que o chão é fiel, dedicado ainda que inconveniente, intempestivo, caprichoso. Todos os homens da Terra são pastores, lavradores neste chão. Amam-no com a determinação e empenho que se dedica a uma amante teimosa mas única e por isso indispensável. Todas as mulheres recolhem dele, mãos abertas no solo ou fechadas em concha, os frutos do amanhã, que hão-de parir e criar os filhos desta Terra. As crianças espojam-se nele, comem o seu pó, lavam-no com as suas lágrimas ou salpicos da ribeira. Os velhos deixam-no entrar pelos olhos dentro. Das soleiras das portas, dos quintais nas traseiras, absorvem-lhe a luz, a dureza, o movimento- só os tolos acham que a Terra não se move- e tranquilizam-se.

Todos sabem que tudo está certo quando se olha o chão, que está por debaixo dos pés é certo, mas que permite uma espinha direita, cabeça erguida. É digna a Terra e enquanto houver chão não há furto possível a esta condição. Na distância que há quando se passam dois rios ou um oceano para ir até onde a vida possível poderá ser melhor, surge muitas vezes a memória deste chão, recoberto das lajes da casa de entrada, da terra batida do largo da feira, do solo árido a tapetear o olival e então chora-se.

Sabe-se que há um chamado que é preciso cumprir. Volta-se à Terra, ao chão que é nosso e começa-se de novo, É assim na Terra: antes de haver homens, já havia chão.

https://m.facebook.com/RicardoZambujoPhotography/

domingo, 30 de outubro de 2016

Do Monte à Terra

  Na Terra as manhãs são límpidas. Tocam os sinos a marcar as horas. A luz e o som entram pelas casas, pelas frinchas das portas e das janelas e pelos intervalos dos postigos. As cortinas de renda ondulam levemente, quase sem o fazerem, aos primeiros sopros da brisa da manhã. Ouve-se o som de uma cancela de madeira a arrastar e os pássaros fazem piados lentos e bonitos para dedicar às primeiras horas do dia e aos homens madrugadores. Dentro em pouco subirá no ar o cheiro das fatias fritas, do café fervendo, da lama assente nos caminhos a secar aos primeiros raios de sol.

  Pela estrada velha, a única na Terra antes dela o ser, sobe-se ao Monte, o lugar único onde tudo começou, abençoado pela água sob a forma de uma ribeira que lhe corre por dentro e que o faz senhor de tudo quanto o rodeia. 

  Teresinha não sentia que habitava o Monte mas antes que este a tinha engolido quando criança e que vivia presa nas suas entranhas, qual Jonas na barriga da baleia. Vivia uma existência abúlica, de mão no queixo, cabeça nas nuvens, olhos muitos vezes cerrados ou levemente húmidos por conta dos sonhos acordada ou dos inúmeros bocejos. Vestia vestidos de algodão leve e rendas, sapatinhos de pele importada, o cabelo em canudos estrategicamente presos com laçarotes de cetim. Palavras bem medidas, aulas de costura, Francês e Religião com as freiras da vila e de doçaria com a Ti Inácia na cozinha, Teresinha parecia uma santa ou uma boneca na caixa, com a corda nas costas, ainda virgem, pronta a ser puxada para que andasse e falasse como era esperado que fizesse.

Teresinha era pois, facto consumado, um lindo vulcão bem vestido e penteado, adormecido. Acordava todas as manhãs e inspirava profundamente o primeiro ar frio do dia com esperança de que se enchesse tanto de ar que talvez ficasse leve e flutuasse, voasse por cima dos muros altos do Monte, do olival e da vinha que se estendiam numa área infinita para lá da sua janela.

  Teresinha odiava com um amargor não suspeitado, o servilismo forçado das criadas. As constantes tentativas para lhe tentarem perceber todos os sinais, tiques e toques, à mesa, na cama, portas adentro, antecipando-a, acreditando que isso sim, era bem servir. Todos os dias recomeçava Teresinha uma batalha com o seu lar, de gente que não lhe estava próxima do coração ou sequer que a tocasse ao de leve na pele, via rápida para os sentimentos.

  Às vezes vinha a Dona Laura, professora da escola primária, para tomar chá e bolinhos e a conversa revolvia invariavelmente ao redor das crianças miseráveis da Terra, de barrigas vazias mas de peito cheio, trazidas à escola pela mão das avós ou dos irmãos mais velhos ao toque da sineta. Mais tarde, à porta do Monte acumulavam-se muitas vezes essas mesmas crianças, andavam "à pida", quilómetros a pé e em bando, implorando de porta em porta, por um aconchego para o estômago, alguma coisa que engrossasse o caldo magro que recebiam nas suas casas à noite.

  Teresinha dava-lhes tudo o que aparecia, sacos de nozes, potes de mel, metros de tecido, qualquer coisa, sem pensar a quanto nem porquê. As criadas impacientavam-se, que tudo isto lhes desorganizava as contas e o avio. Quanto ao pai e à mãe, não se opunham, alguma coisa teria de ter Teresinha com que se ocupar até que se casasse, ou não? Manuel Augusto e João Bernardo, seus irmãos mais velhos, lá estavam, cada um na sua vida, um engenheiro na capital e o outro, senhor de terras ainda mais a Sul, um deus ganadeiro que prometera a seu tempo, trazer marido para a irmã mais nova, um homem direito, como ele próprio, outro pequeno deus que pudesse transferir calmamente a sua irmãzinha da barriga da baleia para a boca do lobo.

  Uma ocasião, voltou atrás um desses gaiatos que andavam de monte em monte, dia após noite. Chegou já ao final da tarde, pouco faltava para a hora da ceia e envergonhado, pediu à criada da cozinha para falar com a Menina Teresinha. Mandava-o seu pai, homem novo mas viúvo que por conta de um feitio inquieto e bravio, já não tinha parança em trabalho algum sob a alçada do senhor do Monte. Devolvia com muitos agradecimentos a nota alta que lhe mandara a menina, que dinheiro não, não precisava, só de trabalho e de comida para a boca.

  "- O teu pai sabe ler?" indagou Teresinha ao gaiato. Que sabia, que, filho do único sapateiro da terra, tinha podido fazer até aos estudos liceais e que mais não fizera porque se lhe foram os pais na mesma altura e que tinha tido de começar a trabalhar. Não contava porque não sabia que pela mesma época, engravidara a sua mãe e que teve de fazer um casamento apressado, mal tendo onde viver e o que comer e pouco gozando da alegria de ter uma mulher que esta também se finou no parto do seu menino. Zé do Diabo o passaram a chamar. 

  Pois mandou-lhe Teresinha uma mensagem no papel perfumado de carta que tinha na mesinha do quarto e no qual redigiu tantos outros bilhetes que se seguiram a este, com o mesmo destinatário. Perdoasse pois o Sr. José a insolência, se lhe causava mau estar, que havia mandado o dinheiro ao menino pois as criadas adivinhando a vinda dos gaiatos, lhe haviam sumido com tudo da frente e trancado a despensa com a desculpa dos ratos e que com dó de ver os meninos saírem do Monte de mãos vazias, passara a cédula para a mão do Alvarito (assim se chamava o menino) que lhe parecera o mais ajuizado, para que a repartisse com os seus companheiros.

  Desculpas aceites, o Zé do Diabo não podia consentir que a menina Teresinha pensasse pois que, pobre ninguém, se tomara de ofensas por teimosia em questão tão miúda. Bilhete veio, bilhete foi, passou-se um ano na vida do pequeno Álvaro em que a missão de levar e trazer palavras do Monte à Terra e pelo mesmo caminho de volta, era mais importante do que saltar ao arco ou jogar à malha no Largo do Poço. 

  Pela Festa de Verão viu-se o Zé do Diabo pela primeira vez pisar a casa de Deus na Terra, igreja adentro, fato novo, botas engraxadas, quase um desmaio ao ver Teresinha, santa e vulcão, pisando discreta o caminho do altar para comungar. Acabada a festa, foi um ar que se lhes deu aos dois. Antes, aos três. Em cima da cama no Monte, as rendas, os laços, a mãe lavada em lágrimas, os ecos dos gritos do pai e dos irmãos, jurando matá-los ou renegá-los se não o conseguissem.

  Fez-se uma nova Terra noutra Terra em que Teresinha se fez do Diabo, em que se permitiam ser vulcão e ribeiro manso, uma santíssima trindade de trabalhos, de risos, de dias difíceis e completos. Em que um Homem é Homem no sagrado da sua casa, da sua própria Terra.


in: http://www.meloteca.com/portugal-poesia-e-musica-alentejo.htm 



terça-feira, 28 de junho de 2016

Terra de Joana da Cruz

"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos."
                                                      SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira.

Difícil é pôr em papel o tom de uma voz. O trinar antes, de uma garganta que seguramente estaria reservada muito mais para pássaro do que para gente. Primeiras tiradas, requintas vibrantes, Joana cantava com o corpo todo. Antes mesmo do tempo das igrejas na Terra, a sua voz era como cântico divino, a multidão em sua volta para a ouvir cantar uma- não tão pequena- assembleia de fiéis.

O povo não a ouvia sem se comover, sem se deixar imbuir de um dó muito maior do que o que vivia nas notas e palavras das muitas melodias inventadas pela boca de Joana. Até ao velho Jerónimo, pastor de cabras, nos seus caminhos perdidos, lonjuras da Terra, o som da voz de Joana alcançava. "Eia Joana de uma cana!" gritava-lhe o velho lá de onde estivesse, corpo sacudido pelo choro, sinal de uma solidão que nem sabia que sentia.

Era assim a voz da moça, parecia que entrava pelos corpos adentro, fazia a gente de repente consciente de que o coração bombeava o sangue: o som entrava na cabeça e depois era o diabo para sair. Os olhos fechavam, a cabeça pendia como que a pedir oração ou a vergar-se à sua inevitabilidade. E se algum grupo era chegado, botas de cardar batendo o terreno, pés firmes pelas ruas da Terra afora no final de mais uma jorna, ao som do arranque do peito da Joana em versos que faziam doer por dentro, imediatamente se sustinham. Imóveis. O tempo parado. O ar quieto. O calor a fazer tremer a paisagem e a voz de Joana solta pela planície, a atingir em cheio o pôr do sol. 

Todos os dias igual. Serviço acabado, chão de lajes lavadas, tímidos estalos do lume a soarem no lar se era Inverno ou o som dos primeiros ralos nos aloendros e pereiras do quintal se acaso fosse Verão. Joana tomava da sua cadeirinha branca de florinhas azuis enfeitada, assento de palha grossa entrançada, presente dos padrinhos aos quinze anos. Ensaio de um dote que nunca chegou a sê-lo ou a servir como tal. A cadeira em frente da porta de casa e enquanto debulhava favas, ervilhas, feijão, vagens, Joana afundava a dor, tanta e tão comovida,em notas perfeitas, numa garganta de mel, numa língua agitada, numa voz clara, pura a lembrar água corrente, ribeiro manso na secura da Terra. 

Aos quinze anos precisamente caiu Joana da Cruz de rosto num braseiro. Os olhos não se salvaram. O rosto queimou como papel. Joana só por dentro. O seu dote descobriu-o nos versos que dita, na música que nunca soube que lhe vivia no avesso.

Ninguém se atreveu a falar da maldição de Joana pois se a tantos lhes parecia mais uma benção. Se não para a própria, para os da Terra, gente de pouca fé. que descobriu o sagrado no som daquele peito magoado, naquela boca desfigurada e que cantava o amor e o desamor como se os conhecesse de outras vidas, de outros lugares.

Dentro do coração de Joana, o lume não interferiu para estrapaçar. Antes, atiçou-lhe como que uma chama nova. Um som que falava com ela, que a convidava para os limites de todas as Terras, que a fazia ver para além da alvura das casas, do pó vermelho dos caminhos, que as árvores e muros de pedra marcando os limites destes montes e herdades.

Crescia Joana em cada nota. Elevava-se para lá do que os seus olhos aguados, quietos, afundados, chegaram a ver nos quinze anos em que falaram com ela. Nunca houve pena em Joana. Havia uma dor calma, quase serena. Talvez a dor de saber que é necessária dor para que haja crescimento. Para que no fim, a sua voz viaje e cante por ela e por todos quanto na Terra habitam e não têm voz.



in Alexandre Pomar, Sete Fotografias





                                Celina da Piedade- Rosa Enxertada (Tradicional Alentejana)


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Pascoal e a Terra

"Nunca ouviste passar o vento. 
O vento só fala do vento. 
O que lhe ouviste foi mentira, 
E a mentira está em ti." 


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema X" 


  O Pascoal era só mais um filho da Terra, tão vulgar ou especial como os pilares que sustentam as abóbadas altas das casas brancas ou como as mimosas e olhinhos-de-mel que salpicam a charneca.
Ser único na Terra é ser todos e por isso mesmo o Pascoal não era um gaiato diferente dos outros, o jeito para a bola, o mesmo; os dedos das mãos contados não davam mais nem menos que os dos seus companheiros.

  No entanto e apesar da felicidade geral que os da Terra sentem ao afirmar-se unos ou só mais um para fazer o todo, o Pascoal tinha um andar, um ar de quem se importava com estas coisas. E de quem importava mais do que todas as coisas.

  A facilitar, tinha na avó Roberta uma motivação como se vêem poucas, para seguir de calcanhares bem firmes no chão e nariz levantado no ar, bem acima dos demais. Os seus pais tinham umas terras, coisa pouca, uma azeitona para o lagar, dois ou três porcos, um nadinha de horta. Pais já quando a esperança de o ser se acabara, tinham tomado o ofício de caseiros na Quinta Nova e trazia-se pois o menino criado com requintes de fidalgo pela avó, velha como as entranhas da Terra, nas ruas da aldeia, seu palácio.

  Os pés cresceram em sapato, a gola dos casacos o taparam da chuva e do frio e sempre a velha Roberta tinha para ele no seu regresso da escola ou da vadiagem, uns brinhóis acabadinhos de fritar, um caldinho de galinha quente com os pequenos ovos cozidos a emergirem na tigela de barro ou ainda uns bolinhos fintos com licor de poejo que "um dia não são dias e o menino tem de se criar". Na venda do Carrasquinho se a viam entrar, já se sabia que ninguém de lá saía sem ouvir bem a história do seu príncipe, um pequeno milagre que Deus ou as artes mágicas lhe entregaram para que fizesse dele um homem. Mas não um homem qualquer. Qual! O seu Pascoal, nascido que foi no Domingo de Ramos se não se estava mesmo a ver, que estavam para ele guardadas grandes coisas na Terra. As comadres riam-se e encolhiam os ombros. A Ti Ana do Paulino de uma vez bem se apoquentou com ela eram os netos anda uns fedelhos de cueiros. Tudo por modo de um comentário da velha Roberta ao neto da outra pobrezinho, que lhe parecia um enfezado, as pernas umas caninhas, quando comparado com o seu Pascoal, um rapagaço, de andar firme e olhar decidido.

  O moço por sua vez cresceu mesmo em imponência, ombros largos, voz rouca, aos treze anos apresentava já os primeiros sinais do que viria a ser um bigode escuro, cerrado sem o qual nunca mais foi visto, moda rara nestas partes da Terra. Na escola, Dona Lurdes tratava-o nas palminhas. Muito possivelmente seduzida pelas alcofas cheias de morcelas e cacholeiras, melões e tomates maduros e um punhadito ou outro de feijão meloal que a velha Roberta lhe fazia chegar de ora em quando pela porta do quintal da casa de professora.

  Não que fosse mandrião ou que tivesse pouca inclinação para aprender, o Pascoal impacientava-se antes com o tempo que passava sentado atrás da carteira, imóvel, quando o que mais queria era andar pelas ruas a mostrar as suas botas novas, toc-toc-toc, no chão asfaltado do largo, ou a correr em direcção à ribeira e de lá pescar o maior achigã que pudesse para vir exibi-lo depois aos companheiros, aos vizinhos, a toda a gente.

  O Pascoal era corpo, era ímpeto, um furacão. Por isso mesmo não seria de estranhar que o Pascoal escolhesse uma mulher à altura, chegada a hora de arranjar namoro. Pois nisso, o Pascoal foi mais longe que qualquer um na Terra ou nas terras fora dela. A Lídia era a filha de um caixeiro-viajante. O pai vendia tarecos, panelas, tachos, facas, copos de latão, numa carroça de terra em terra, sem terra que fosse sua. Conheceram-se na Aldeia do Meio em Junho quando o Pascoal foi para lá desafiado para uma caçada. A Lídia estava montada numa carroça a apregoar tudo o que o seu pai, doente e afónico, já não conseguia vender sozinho. Vestia mal, roupa um pouco sovada do uso, cabelo mal amanhado, não havia vaidades na hora de trabalhar. Só que para o Pascoal lá da Terra, foi como ver o rosto de Deus, O pescoço alto, fino, as pernas longas sob a saia arregaçada, a trança desfeita, mechas de cabelo forte, ruivo a encaracolar por fora da fita, um retrato que fazia de Lídia um espaço inteiro, sem vazios a ocupar o Pascoal por completo.

  Na Terra não se falava de outra coisa: o portentoso Pascoal, benção do Domingo de Ramos, fugira com a filha do caixeirinho. Não havendo desfeita nisso, riem-se no entanto os homens, cochicham as mulheres: quanto mais alto se sobe...
E a Terra é dura. Implacável. Regressam a ela todos os que são dela.

  A velha Roberta emudeceu. O dia fez-se noite e enquanto fervia umas sopinhas de tomate com batatas na panela de ferro junto ao lume, pôs-se a cismar no triste destino que pôs afinal o seu Pascoal no mais comum dos trilhos da Terra. Caiu de borco ali mesmo e nunca mais voltou a falar. A filha recolheu-a na sua casa e o casamento lá acabou por se fazer. Todos se conformaram e a Terra engoliu a grandeza do Pascoal. Deu-lhe a vida não de um, mas de todos os que a habitam.

  Afinal, quem na Terra não teve o seu destino ditado pelo Amor?
Credits: Henk Heijmans in Pinterest

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Do Coração da Terra.

"Loucos ou sábios, como o saberemos? Consolávamos o inquieto coração pousando os olhos na linha imaginária do horizonte, e vivíamos."

                                                                 in Uma Pescaria (conto), Agustina Bessa Luís

O toque é estranho aos que por debaixo dos panos, das vergonhas e pudores diários, trabalham a Terra. São elemento quente, apontamento suave no solo frio e duro que se rompe dia após dia para dele retirar vida e sustento. Estremece-se o corpo, aos dedos que deslizam discretamente por um braço, que por sua vez mal os sente fisicamente, tal é a profusão de camadas com que se cobre. 

Mas o coração, oh esse sim, tem terminais nervosos muito mais sensíveis que os da epiderme. O vento morno de um murmúrio soprado numa nuca, ali bem a rasar a linha onde termina o nó do lenço ou o roçagar leve de um joelho noutro em dois corpos sentados em cadeiras à beira do lume e que mal se podem olhar. São toques, pormenores que não se podem perceber senão com um sentido que não é o sexto ou sequer o último, mas o primeiro de todos.

O sentido das coisas em que tudo encaixa, se ajeita, se compreende sem a necessidade supérflua de palavras, sons, diálogo nenhum ou entendimento racional de qualquer espécie. O coração dos que se tocam sem precisar de o fazer, não tem limites humanos ou naturais. Vive muito para além das fronteiras desta Terra: galga os cursos de água, pisa os poejos e a hortelã-da-ribeira deixando o rasto e o cheiro da memória no ar pelo caminho; voa por cima dos telhados de telha marselha; bate asas acima do branco dos rostos das casas e chega exactamente onde tem de chegar, no momento exacto para que o outro coração que o espera, saiba que o caminho é menos que nada, obstáculo ridículo entre um e o outro.

A pele de dois corações que se fazem corpo tem rastilho, pavio curto. Incendeia-se constantemente ao toque, à presença apenas- real ou imaginada- da sua metade fundamental. Nos bailes de Verão, sobre o chão escuro de tacos da Sociedade Recreativa ou na terra batida do largo, enfeitado de luzes foscas, em tom amarelado, ao som de uma qualquer moda argentina, que poucos parecem realmente escutar, sobressaem não raro, um par de pés que não tem duas vontades. É desses que falo. Os corpos agarrados, viajam muito acima de qualquer som, de todos os elementos físicos na Terra: eles já se encontraram num qualquer plano divino em que viveram muito antes dos seus pés se encontrarem num fim de tarde em Agosto.

E quando a tela dos corações se cose, reúne, fica una de novo, então não há maneira de o ignorar, de lhe voltar as costas humanas. Na Terra chamam-lhe bem querer, ou só querer. Tanto, tanto que em breve os homens terão de erigir a casa, as mulheres terão de cortar e coser os tecidos que servirão de abrigo para guardar este coração novo, reunificado, esplendoroso, que vai viver num tão simples corredor da Terra.

Porque dizem os antigos, que o Amor é simples e que é só assim que ele vive. E que dá testemunho. E que toca sem tocar os que a ele acorrem e que por ele vivem.



sábado, 13 de junho de 2015

Mães e filhas num fio de Terra

  "What if I fall?
   Oh, but my darling, what if you fly?"

                                Erin Hanson

  As mães e as filhas estão cosidas umas às outras, num lugar nunca visto, muito imaginado mas frequentemente sentido entre batidas do coração. E definitivamente real, absolutamente indicável, passível de ser provado e apontado até por duas manitas de uma filha em crescimento ou em sorvos profundos do corpo da sua mãe.

  Há uma cola universal que nasce com a mãe, não quando ela nasce, mas quando nasce como mãe, que faz a sua função de unir, unificar, um e outro coração: uma mãe e a sua filha. A esta ponte que não chega a sê-lo pois não há duas margens mas apenas um rio grande, furioso de emoções, acrescentam-se as horas em que duas foram sempre uma, os dias a sucederem-se aos dias numa infinita partilha, numa fome nunca acalmada de precisar de se ser só uma quando os corpos são dois.

  A Terra cresce com as filhas e molda as mães. Sabe quem elas são muito antes de elas o serem. Estende-lhes o chão debaixo dos pés para que ande uma e logo a outra, sob o sol quente, num caminho que e só delas. A mãe e a filha parem-se uma à outra em choros e em dor: o choro de se querer tanto esta vida nova para sempre a duas, a dor de saber já que terão de viver tantas outras dores sem que a mão amada possa lá estar constantemente a amparar, a mimar, a cuidar.

  Dão-se os primeiros passos, pouco firmes é certo, neste universo novo e o mundo desalavanca as suas estruturas para voltar a girar uma e outra vez. Os dedos perfumados de sabão azul, de terra fresca, de coentros e poejos que são os da mãe, pousam suavemente sobre os das filhas para paulatinamente, a irem ensinando o jeito certo para amassar um pão, para alimentar as galinhas, para cerzir umas calças, para temperar um caldo ou varrer as lajes da cozinha.

  Mais ainda, a menina pequena, mulher em construção, aprende sem palavras, a tomar conta do corpo, a sarar as suas feridas, a chorar as suas tristezas, a benzer os de casa. Meneia-se ao som de um acordeão nos primeiros bailes tal como viu a mãe fazer às escondidas num dos quartos, enquanto achou que ninguém a viu porque bailes não são já para ela, que os gozem as raparigas solteiras.

  Crescem as meninas e às suas mães crescem os cuidados. Saem-lhes do colo ainda de cueiros e fraldas de pano e voltam em vestidos de noiva, num qualquer Sábado ou Domingo escondido numa dobra do tempo, inacessível a qualquer mãe.

  As mães choram as mágoas das filhas porque são as suas, duas vezes. Sai-lhes do peito o coração logo que as veem dar os primeiros tropeços nas ruas de terra batida, para depois nunca mais o poder voltar a guardar, porque tudo é um cuidado, uma dor para a mãe impotente que só pode deixar que a menina nasça mulher.

  Há no entanto, latente entre elas não importa a distância na Terra ou fora dela, um fio que não se quebra. Permanece na filha uma sensação de que mais tarde ou mais cedo se transformará na sua mãe, que serão uma finalmente, no dia em que ela souber o que é a maternidade e começar tudo de novo.

  Por isso um colo é um espaço infinito e não cessam os abraços em redor do pescoço. Mudam-se os motivos, as idades, os dias passam e com eles os céus roxos e laranjas das planícies, mas uma mãe quando nasce é para sempre. Uma filha é bem mais do que uma pessoa a quem pariu: é a possibilidade sim, de ser-se de novo, uma vez após outra, de cumprir-se e concretizar-se em todas as mulheres da Terra.


Pierre Gonnord@ in http://charivari.pt/2015/03/12/a-nobreza-da-comunidade-cigana-do-alentejo-em-serie-fotografica/






sábado, 18 de abril de 2015

Joaquina da Terra

  A Joaquina é um bicho-da-conta. Toda enroladinha, os queixos a baterem no peito, as costas curvadas numa curva perfeita, tão redondinha a Joaquina que se não fossem os solavancos de uma perna com que manca ligeiramente, aventurando-se pelas ruas não calcetadas da Terra, quase se podia dizer que ia ali a passar uma lua cheia vestida de luto.

  Os gaiatos fogem da Joaquina. Mal a vêem vir dos fundos da aldeia, do terreiro seco ao pé do poço da estrada, mesmo ao rés da escola primária, até batem com os calcanhares no cu, correndo, correndo, bradando aos outros que vão vendo pelo caminho: "Foge, foge que aí vem a Jaquinita, a bruxa da cara bonita!"

  É que essa é que é a verdade: o raio da velha tem uma cara limpa e sadia, uma testa quase lisa, ornamentada com uns olhos azuis de água, de criança. Seguramente não de velha. Dizem os gaiatos que ela os roubou a uma princesa moura que passeava numa mula a colher estevas para se enfeitar e ficou com eles para ela atirando a princesa e a mula para dentro do poço ao pé da sua casa. Não há nada que os gaiatos não inventem na ânsia de explicarem o inexplicável através de cabecitas tão pequenas que ainda estão no tempo em que os animais falam e as fadas passeiam nos quintais.

  Pois a Joaquina lá vai, de manhã tão cedo que nem bem luz há. Atravessa a aldeia pelo lado das hortas. Não quer ver ninguém senão a sombra dos pastores ao fundo ou o vestígio de cor apagada de uma bata de trazer por casa de uma ou outra mulher mais madrugadora que tenha saído rapidamente para ver a cor do dia. Segue pelos frajais, rente aos muros quando os há e lá se vai arrastando como pode, vencendo a pé a língua de terreno, pedras e torrões que liga a aldeia ao cemitério. 

  Lá chegada, pára e encosta a palma da mão ao portão. Hesita sempre um ou dois segundos, imbuída do espírito de santuário que parece emanar dos contornos de ferro e ferrugem daquele portal para o outro lado da vida. Ao passá-lo, dirige-se sempre ao mesmo local, agacha-se e ajoelha-se com tanta dificuldade que quase se ouve o ranger dos ossos e das vértebras a dobrarem-se, a atingirem o solo.

  A cabeça descai ainda mais para o peito. A mulher transforma-se num vulto escuro e é difícil distinguir-lhe por baixo do lenço, vestido, meias, xaile, tudo negro, os limites do seu corpo humano. É antes uma mulher-embrião, morta em vida, em oração profunda, estática como o márnore das campas à sua frente.

  Só que dentro deste casulo de mulher há um mundo de imagens, de sons, de cores, de coisas vividas num tempo que já não há. Vê-se a si mesma, a Joaquina pequena, pequenina, filha única e adorada nos braços quentes da sua mãe, a Ti Bárbara. Ouve nos seus ouvidos já moucos as cantigas que a voz materna enchia de mel:


                                        Sossega agora minha Joaquina
                                        Faz na mãe o teu soninho
                                        Meu doce, minha menina
                                        Cheiro de cravos e rosmaninho.

  Sente o embalo dos braços da mãe nos seus. Nem sabe quando foi que saíu deles para embalar ela mesma o berço do seu menino. Traz ainda nos seios o calor do hálito do filho, sente-lhe a forma da boca encostada contra o seu peito. Aperta o seu corpinho despido de encontro ao seu, sente-lhe o odor universal de bebé, de menino da sua mãe. Na sua cabeça sussurra-lhe palavras meigas, cantigas, histórias, orações, bençãos. Cura-lhe todas as dores com um sopro leve na nuca, com o sinal da cruz na testa. 

  É mãe sozinha, o pai nunca esteve. As comadres da Terra diziam à boca fechada que fugiu enfeitiçado por uma da Aldeia Nova, que andava arranjada com uma virtuosa. "Que fosse!" disse a Joaquina. O mundo todo estava na Terra, nos olhos do seu menino.

  Só que o vento que embalava o berço, que seca os lençóis no varal, que nos empurra para que andemos, também sopra de atravesso, vira as cabeças, consome os homens, os meninos.
  Nos olhos de água da Joaquina refulgem os raios impossíveis do sol que brilhava intenso, devastador, no telhado da casa, sobre a chaminé branca de onde pendia a corda, de onde se via o seu menino pendurado pelo pescocito. Nem homem era, nem dera tempo de o ser o maldito vento!

  Nesse dia encurvou-se a Joaquina. Não mais olhou para cima. Poucos podem dizer, depois desse dia, que lhe viram a água dos olhos ou o rosto limpo. Enrolou-se, desprendendo-se dos ossos, caíu sobre o chão e deixou-se estar.

  Vai e vem como um pêndulo, antes que o dia seja dia, todos os dias (do resto) da sua vida na Terra até ao jardim sombrio e ventoso onde repousa agora o seu menino. Volta antes que dêm por ela. Os gaiatos já estão dentro da sala de aula, poucos notam a sua passagem. Silenciosa como a madrugada, sozinha como a vastidão da planície que a fez, segue pela estrada. Arrasta a perna, avança, força-se a andar para a frente. Porque na Terra não há caminho senão esse.


Imagem: http://paula-travelho.blogs.sapo.pt/2008/12/



quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Meninos da Terra

Ao Miguel: pela honra que é ver um homem a nascer de um menino.
                                                                               

  Os donos da Terra não são os senhores dos montes, dos campos a perder de vista, delimitados aqui e ali pelos muros de pedra levantada do solo. Quem manda por estes lados não é o senhor do solar no centro da vila ali a dois passos, pois não.
Este chão é pertença dos verdadeiros reis da Terra: os meninos-homens que ganharam as ruas, os bandos de rapazes que as percorrem de fio a pavio desde que o dia é dia até que a noite se esgueire por debaixo da Terra. Eles aí vão: o Inácio, o Joaquim, o Zé Miguel, o Galito, o Petanca, o Papa-bichos, o Corre-mundos...


  Invadem a aldeia com a sua algazarra, cortam as esquinas com seus aros e varas, bolas de pano, corridas de pneus, jogos de guerra. São homens pequenos e muitos deles já trabalham, outros estão a começar a deitar corpo, a sonhar acordados.
Ouviram as primeiras letras e já sabem fazer versos, rimas de namorados. Calçam botas, vestem coletes esterlicadinhos para irem em grupo, aos bailes da sociedade. Põem-se à porta da padaria, a morder palhinhas, a cheirar o ar quente, de moedas contadas, à espera que a porta abra para serem os primeiros a ferrar o dente num bolo folhado, num olhinho de mel.

  Há um que é filho do mestre da música, é o Panças: anda a aprender o acordeão. Parece um homem do alto dos seus doze anos.  Os outros acompanham-no com vozes a tremerem entre a idade que têm e a que querem ter. Carregam a lenha às mães, fazem mandados na venda para as avós, assobiam orgulhosos de machadinha nas mãos enquanto aprendem a podar videiras, a enxertar oliveiras, a matar um porco e tudo o mais que os pais lhes possam ensinar, que dois braços em casa querem-se é para trabalhar.

  Mas os meninos de pele morena, cabelos fartos, olhos de azeitona bical e buço tímido querem antes os braços para saltar ao alho, para puxar a fisga com força e atirar aos pássaros. Fazem-se fortes, a correr pelos campos infinitos, pelos horizontes profundos, tão longínquos que os fazem crer que eles próprios são invencíveis. Como o ar que respiram, como o sol que lhes cobre as cabeças, os chapéus de abas ou os bonés de feltro.

  Fazem lutas corpo a corpo,entesam os músculos  joelhos esgravatados, narizes a sangrar, as pastas da escola a voarem por todo o lado, para num assobio, darem tudo por acabado e lançarem-se à água, nus em pêlo, numa irmandade indizível de crianças a fazerem-se adultos com a mesma vontade, a mesma gana de viver, o mesmo ímpeto com que as águas da ribeira galgam as margens e alagam a Terra durante as chuvadas.

  No avesso de um menino vive já o pai dos seus filhos, o marido da sua mulher, latejam já as pernas que hão-de caminhar sobre a Terra dia após dia num vagar reconfortante de quem cumpre a sua jorna, de quem sabe que encaixa. De quem dá e recebe vida.

  E são os gaiatos correndo pelos caminhos, calcando bem o chão que os acolhe quem dá à Terra o seu sustento, fazendo dela a casa de outros mais que hão-de vir. Para que não se perca nunca a infância dos homens.





 
                                                          

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A magia da Terra.

"A única forma de chegar ao impossível é acreditar que é possível."
                                               Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

  É nas horas frias da noite, na boca aberta da madrugada, dizem, que aparece o Zé do Diabo. Tem um capote largo e escuro debaixo do qual esconde as crianças incautas que trata de roubar aos pais pesarosos.

  É porém,  durante o dia e junto à ribeira que é preciso cautela com a velha Micaela. Tem a cara moída da velhice maior que a do mundo e umas garras que puxam as canelas dos mais distraídos  da margem directamente para dentro de água.

  É preciso cuidado ainda com o leve-leve que dá quando os bailes acabam e a bebida assenta ou não. O João da Eira pode jurar que viu o pai desaparecer no ar, assim tal qual, deu-lhe um embaço e foi-se para não mais voltar.

  Rezam-se novenas às sextas-feiras por alma de quem mais não pode. Ao mesmo tempo fazem-se uns nós de palhinha por baixo do assento do namorado que nunca mais se decide a casar. Baptizam-se os meninos debaixo dos olhos do vigário e da santa cruz para à noite, os entregar à lua nova no céu imenso da noite - que só pode ser ali a morada de qualquer deus.

  São da Terra as histórias que animam os serões, que aceleram o passo até dos mais corajosos que vão do largo do mercado para as suas casas no fim da feira.
Dos bruxos e virtuosas ninguém fala. Esses são curandeiros, bençãos disfarçadas em cara de gente. Deitam os óleos, aplicam unções que nunca chegam a ser extremas e fazem chás. Tiram os males do corpo quando o corpo está pronto para se entregar. Que para tudo é preciso fé e horas de dias e  noites a passar diante dos olhos.

  Nascem as mulheres e os homens desta Terra já com o sinal da cruz na testa para depois pousarem os pés nela pela primeira vez e descobrirem que ela vai menos povoada de gente que de seres fantásticos, madrinhas de luz, homens de preto, almas penadas, santos que não se elevam porque não largam o seu chão, É uma religião tão cá da Terra a nossa que se deveria chamar antes semente ou raiz.

  Se morre um marido à sua mulher, as lajes não se lavam, o cabelo não se penteia e volta-se as costas à porta. Se morre um filhinho- e não há religião que console desta traição- é natural que os pais variem. Não destapam nunca mais a cabeça. Todos enlutam e conforme a dimensão da dor, o luto  avança ainda mais pelo corpo, deixando às vezes só uma nesguinha de vida perto dos olhos.

  Na Terra a família é só uma e uma benção para mim é uma benção para todos, uma desgraça geral é como uma dor só minha. A Terra que tanta terra comeu na poeira dos dias através dos tempos, sussurra entre dentes as suas orações. Que não são a este ou àquele santo ou um apelo a um Deus que tão longe vive. São antes impulso, chamada entoada aos irmãos e irmãs que vivem na mesma energia, que marcham com os mesmos pés, nas mesmas labutas, com as mesmas dores e alegrias.

  Somos um só por aqui e essa é que é a magia da Terra.


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O Tempo e a Terra

  "Mas tu só vais conseguir
Esta terra possuir
Se a pintares com q
uantas cores o vento tem"

                                      Susana Félix, Quantas Cores o Vento Tem

  Na Terra não se corre. A pressa não serve aos de cá, a não ser que seja a de viver ou a de sorver o ar todo pela manhã. Aos da Terra, reconforta o lento viajar dos ponteiros do relógio de uma hora a outra perfazendo o ideal de gratidão- e não de passividade- que permite um tempo para cada coisa e cada coisa em seu devido tempo.

  Todos sabem da urgência de não tornar nada urgente e de abrir o peito, os olhos, a porta de casa ao que o dia trouxer de novo. Ou de imutável, que é o que - dizem os outros- custa mais enfrentar com paciência, resiliência. Sobem nuvens na atmosfera, descem águas sobre o chão e sobre os homens; a noite faz-se menina para logo em seguida se fazer mulher madura, alta, impenetrável, até que a luz se imponha, a domine sem a aprisionar e morrem os velhos para se criarem os filhos.

  Flores só as do campo: as macelas, as mimosas, alguns dentes de leão e as saudosas papoilas. Árvores que chegam sementes e ficam para sempre, arreigadas ao solo, numa relação eterna. Os homens, os animais, todos vêm e vão numa cadência pausada e num desfolhar quase guloso das páginas do livro desta Terra , onde ninguém é personagem principal e onde o final pega com o início, fechando um ciclo que não se quebra.

  Quem parte- pés na estrada, tentativa de andar para a frente, olhos fixos na paisagem para trás das costas- leva no centro de si o equílibrio fundamental dos que respiram as estações do ano. As alterações subtis do vento, o movimento quieto do céu, que se percebe melhor quando visto do chão da planície, o cheiro de um madeiro que arde ou das palhas secas esvoaçando no campo, ajudam à memória de quem fica e o tempo divide-se entre esta ou aquela tarefa. No tempo dela. Porque outro não há senão o de fazer as coisas, o de abraçar com vontade  o que tem de ser feito por uma (ou numa) Terra que é de quem a trabalha.

  E os dias são todos longos e são todos dádivas para quem os quer ver assim. Entram neles muito mais do que números num calendário, pendurado por cima do poial na cozinha ou na parede da taberna. Os dias soam a pássaros madrugadores, chilreando, pipilando, assobiando nos ramos de todas as Primaveras. Sabem a fruta doce como o mel, de sumo escorrendo pelo bigode dos que se julgam mais sérios, em tardes abrasadoras com gosto de poeira de Verão. Aportam em si mil e muitas cores em Outonos de laranjeiras fartas, bolotas castanhas rolando pelo chão, fins de tarde dourados na linha de um horizonte longínquo. Cheiram a terra molhada pelas chicotadas da chuva de um Inverno que ninguém lá fora sabe tão duro, tão amo e senhor do que encontra pela frente. Os dias tocam-se com as mãos o ano todo, palmas para cima, adivinhando a humidade ou a força do vento.

  Deixem-se os que não são desta Terra, os que não entendem ou que fazem pouco caso das costas curvadas de um homem e de sua mulher- meninos também os há- que se encostam à sombra de um sobreiro, azinheira que seja, que é grande a calma, tão vastos os trabalhos, para uma merecida sesta, quando ela é possível.

  É pois do tempo que se gera tempo, que se pare a vida, uma hora vagarosa atrás de tantas outras, fazendo desta Terra uma obra serena, quadro pintado dos matizes puros dos dias.