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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Outono na Terra

  Na Terra o Outono doura pouco. Não há boulevards europeias flanqueadas de árvores centenárias perdendo vigor, entregando cor aos passeios povoados de gente.
A Terra é ela própria um tapete de cores, uma rica manta de retalhos com raízes milenares a querer pouco saber de enfeites. O chão cobre-se de azeitonas que caem como berlindes gordos e escuros das oliveiras; enche-se de ribeiros improvisados nas valas ainda pouco profundas dos caminhos antes ressequidos pelo braseiro estival, solos de sulcos marcados, rasgos cruzando uma superfície seca e rugosa como o rosto das velhas.

  Não adormece a Terra no Outono, prepara-se antes para viver, agora que há fartura e que a água vem benzer os de cá e o que os rodeia. Oferece-lhes farfalhudas couves, opulentas laranjas, bagulhentas romãs, boletas saltando à frente dos pés na beira dos caminhos.

  A Terra guardou-se, noiva ansiosa mas discreta, para os primeiros ares de frio a varrer as casas brancas baixinhas, de soleiras lavadas pelas gotas da cacimba. De Verão era caseira esta Terra. Escondia-se virginal, dentro das grossas paredes caiadas sem janelas que não fossem postigos para enxotar o calor. Deixou a timidez nos meses quentes e veio fazer-se farta, colorida, mais viva que nunca no Outono que lhe devolveu a vida. Que a emprenha de frutos, água, sonhos a renovarem-se e uma esperança ténue mas firme de que com o virar do ano, a vida muda, a jorna encurta, a Terra se renova.

  Vê-se já bem perto, na fímbria delicada dos dias pequenos, o fumo que sai da chaminé de todas as casas alvas, cheiro de morcela ou chouriça a assar nas brasas, a chocolateira a fazer-lhe companhia dando sinal de vida no borbulhar do café negro cujo odor já se vai espalhando e confundindo com o da família.

  Não conhece a moda das cidades esta Terra. Está bem assim. Chegam-lhe novas de céus distantes, dizem que há mar no Norte e aviões que voam 24 horas e não vêem o mundo acabar. A Terra aconchega-se.
Bateu bolo, amassou pão, casou as raparigas. Fechou-lhes delicadamente a porta e deixou-as entrar em casa de braço dado com aquele homem novo que é um par de braços que a amparem até ao fim do ciclo. Benzeu-lhes a porta. Sentou-se ao lume e deixou que o Outono viesse.

  Passo a passo, uma brisa de cada vez, ao longe os últimos pássaros ecoam em despedidas. Preparou-se tudo e a Terra está como a deixaram e nunca mais a mesma. É este o consolo dos que nela vivem: o sentimento de que o mundo gira e encaixa cabendo todo nas ruas da Terra.


https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/


                https://www.youtube.com/watch?v=HUEjTaF6kjk&feature=share

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O Tempo e a Terra

  "Mas tu só vais conseguir
Esta terra possuir
Se a pintares com q
uantas cores o vento tem"

                                      Susana Félix, Quantas Cores o Vento Tem

  Na Terra não se corre. A pressa não serve aos de cá, a não ser que seja a de viver ou a de sorver o ar todo pela manhã. Aos da Terra, reconforta o lento viajar dos ponteiros do relógio de uma hora a outra perfazendo o ideal de gratidão- e não de passividade- que permite um tempo para cada coisa e cada coisa em seu devido tempo.

  Todos sabem da urgência de não tornar nada urgente e de abrir o peito, os olhos, a porta de casa ao que o dia trouxer de novo. Ou de imutável, que é o que - dizem os outros- custa mais enfrentar com paciência, resiliência. Sobem nuvens na atmosfera, descem águas sobre o chão e sobre os homens; a noite faz-se menina para logo em seguida se fazer mulher madura, alta, impenetrável, até que a luz se imponha, a domine sem a aprisionar e morrem os velhos para se criarem os filhos.

  Flores só as do campo: as macelas, as mimosas, alguns dentes de leão e as saudosas papoilas. Árvores que chegam sementes e ficam para sempre, arreigadas ao solo, numa relação eterna. Os homens, os animais, todos vêm e vão numa cadência pausada e num desfolhar quase guloso das páginas do livro desta Terra , onde ninguém é personagem principal e onde o final pega com o início, fechando um ciclo que não se quebra.

  Quem parte- pés na estrada, tentativa de andar para a frente, olhos fixos na paisagem para trás das costas- leva no centro de si o equílibrio fundamental dos que respiram as estações do ano. As alterações subtis do vento, o movimento quieto do céu, que se percebe melhor quando visto do chão da planície, o cheiro de um madeiro que arde ou das palhas secas esvoaçando no campo, ajudam à memória de quem fica e o tempo divide-se entre esta ou aquela tarefa. No tempo dela. Porque outro não há senão o de fazer as coisas, o de abraçar com vontade  o que tem de ser feito por uma (ou numa) Terra que é de quem a trabalha.

  E os dias são todos longos e são todos dádivas para quem os quer ver assim. Entram neles muito mais do que números num calendário, pendurado por cima do poial na cozinha ou na parede da taberna. Os dias soam a pássaros madrugadores, chilreando, pipilando, assobiando nos ramos de todas as Primaveras. Sabem a fruta doce como o mel, de sumo escorrendo pelo bigode dos que se julgam mais sérios, em tardes abrasadoras com gosto de poeira de Verão. Aportam em si mil e muitas cores em Outonos de laranjeiras fartas, bolotas castanhas rolando pelo chão, fins de tarde dourados na linha de um horizonte longínquo. Cheiram a terra molhada pelas chicotadas da chuva de um Inverno que ninguém lá fora sabe tão duro, tão amo e senhor do que encontra pela frente. Os dias tocam-se com as mãos o ano todo, palmas para cima, adivinhando a humidade ou a força do vento.

  Deixem-se os que não são desta Terra, os que não entendem ou que fazem pouco caso das costas curvadas de um homem e de sua mulher- meninos também os há- que se encostam à sombra de um sobreiro, azinheira que seja, que é grande a calma, tão vastos os trabalhos, para uma merecida sesta, quando ela é possível.

  É pois do tempo que se gera tempo, que se pare a vida, uma hora vagarosa atrás de tantas outras, fazendo desta Terra uma obra serena, quadro pintado dos matizes puros dos dias.