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segunda-feira, 23 de julho de 2018

Antónia e os seus meninos

  A Antónia queria muito aos seus meninos. Criava-os a mel e sopas de leite. Fazia rendinhas para rematar as golas e as bainhas dos vestidos das meninas, passava goma nas camisas que os meninos haveriam de usar na missa ao domingo.
Antes de dormirem, preparava água morna para lhes lavar os pézinhos delicados, os dedos gordinhos, punha-lhes pó de talco nas preguinhas do pescoço e das pernas. Cheirava-os, penteava-lhes os cabelos. Cem escovadelas pelo menos em cada uma das meninas. Uma trança grande a pender das costas de cada uma delas. 

  Os lençóis estavam brancos, imaculados, corados ao sol da Terra. O da manhã apenas porque o do meio dia fazia-lhes manchas amarelas e isso seria impensável. 
Engraxava os botins, encerava-lhes os atacadores para que fizessem um laço direito. Costurava, cerzia, calções, vestidos, camisas, lencinhos com as iniciais de cada um. Entre as dobras da roupa nas gavetas, colocava raminhos de alfazema nas das meninas e de rosmaninho no dos meninos. Não os deixava ir para a escola sem verificar bem o comprimento e a higiene das unhas , o asseio da roupa, o brilho dos sapatos: era o que mais faltaria, os seus meninos em desalinho! O falatório que não seria!

  Subia cedo antes do romper do dia às courelas do monte para ir buscar o leite mais fresco ou um queijinho atabafado, envolto em mil cuidados, para o pequeno almoço.
Se lhes subia alguma febre, já não dormia a Antónia. Noites a fio de olhos esbugalhados pousados no sono ardente do seu menino ou na testa em chamas da sua menina.
Ninguém na Terra os via pela hora da calma. Queriam-se branquinhos e sem mancha os seus meninos. Segurava-os pela mão até que aprendessem os primeiros passinhos, carregava-os ao colo para que não os incomodassem as terras barrentas, os cascalhinhos da estrada, as caganitas de ovelha.
Benzia-os à lua, mandava rezar novenas quando os via aflitos.

  Fez-se velha a Antónia, mais velha que a Terra toda, que o círculo longínquo das planícies e dos olivais ao longe, na espera constante pelo regresso de alguns dos seus meninos.
Foram indo para a cidade uns, para o estrangeiro outros e a Antónia ficou, segurando as paredes do monte, mandando caiar, podar, amanhar tudo todos os anos não fosse algum dos meninos entrar-lhe pela porta dentro de surpresa, matar-lhe as saudades que a matavam.

  Não a puderam salvar os seus próprios filhos. Eram para lá de meia dúzia, criados a fome e a ausência pela avó, uma comadre ou uma vizinha. Batiam-se nus e descalços pelas côdeas dos bolos na Travessa do Forno, traseiras da padaria. Morreram dois de barriga inchada de ar ou de maleita a que não procurou dar nome.
Escola se a conheceram alguns foi pela mão da Mestra que os atraía com a promessa de um naco de pão e uma malgazinha de leite.

  Também eles se foram, um após o outro: casaram, fizeram outros meninos que juraram, iriam ter mais sorte do que eles, filhos esquecidos de uma mãe que não usava o título entre a sua gente. 
No dia em que a encontrou o Zé da Inácia que por sua ordem, ia ao monte de duas em duas semanas para cuidar da horta e dos jardins, mandou que se avisasse uma filha, a mais novinha que por ali ficou por se ter casado com o viúvo dono da mercearia (promessa de sustento?).

  Logo a notícia se espalhou como um rastilho pelo sangue dos da Antónia. Vieram sem rendas, golas engomadas ou sapatos engraxados. Vinham sem saber bem a que vinham ou quem iam encontrar naquela caixa de madeira comprida que colocaram no centro da casa que lhes diziam ser a sua. Mas não conhece casa quem não encontrou o calor no colo da sua mãe.

  Dos seus meninos bonitos, todos engenheiros, doutores, bem casadas, gente graúda da Terra mas há tanto fora dela, nem o vento ouviu falar. "Finou-se a criada, Deus a tenha!" disse a matrona, lá longe numa cadeira perto do mar.
Os filhos esses, choraram de rijo, fizeram exéquias, assumiram um luto negro fechado como se deve a um parente. 

  Pois na Terra o sangue é como um ribeiro no seu caminho: salta obstáculos e desvia-se muitas vezes, mas acaba sempre por juntar-se ao leito. 
in https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/

segunda-feira, 5 de março de 2018

Sentar na Terra


 "Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado (...)"

                             Chico Buarque, Construção

 Sentar na Terra é acomodar o corpo para as longas esperas, os calores infinitos, a lentidão dos ponteiros e o rumor do silêncio que invade a gente.

  Há um banquinho corrido, bom para sentar, colocado gentilmente sob a frágil parreira diante da casa. Pode ser uma cadeira, esta foi o tio Domingos Marceneiro quem a fez, o Inácio Cesteiro quem lhe fez dançar, entrecruzar, as tranças de palhinhas do assento para formarem uma rendinha apertada, quase uma mantilha como a que as moças levam pelas cabeças às missas no Domingo.

  Parou esta cadeira à pouca sombra da ombreira da porta da casa, logo abaixo da lista azul da pequenina janela da frente, buinho claro no assento, costas brancas a casar com a alvura da parede que lhe dá encosto. Os quatro pés a sustentarem um corpo robusto que segurou à vez avós, filhos,  netos, choros de amor e de dias fúnebres. Que estalou do sol a querer penetrar-lhe as frechas e da chuva a inchá-la como às laranjas, azeitonas, bagos de uva.

  Está viva a cadeira, como há vida na casa que a pariu, assente no chão da Terra que é um círculo onde se vive, se cresce, se morre e a intervalos se descansa. Cadeira onde deitei a cabeça no colo da minha madrinha quando já não pude suportar os laços apertados do vestido que me cingia a cintura no dia da minha confirmação; cadeira aonde subi para chegar ao ninho de andorinha entalado entre as telhas, um tosco punho fechado de barro de onde caíram três filhotes que de outro modo não voltariam para lá; cadeira de onde vi chegar tantas e tantas vezes o carteiro com as cartas escritas, sobrescritos pesados das saudades da Terra pelos de cá que tiveram de calcorrear o globo em busca de um dia voltar; cadeira onde sentada junto da Avó, aprendi o primeiro ponto, a primeira laçada da malha; onde descansei vinda de um qualquer baile numa qualquer juventude, infância, que merecem elas próprias assento cativo na memória dos dias; a cadeira onde namorei, chorei, sorri, ri sem parar, vivi...

  Uma cadeira que me deixou ser e que vive junto à casa, sendo dela mas ainda mais.
Dando aos da Terra a certeza calma, serena de que sejam quais forem as passadas, o dia, a duração da jorna, ela aí está, firme, eterna, quatro pernas e um assento onde o corpo repousará.
Crescerá.
Será Terra.

in https://goo.gl/images/Di23k1credit: arturpastor





sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Pascoal e a Terra

"Nunca ouviste passar o vento. 
O vento só fala do vento. 
O que lhe ouviste foi mentira, 
E a mentira está em ti." 


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema X" 


  O Pascoal era só mais um filho da Terra, tão vulgar ou especial como os pilares que sustentam as abóbadas altas das casas brancas ou como as mimosas e olhinhos-de-mel que salpicam a charneca.
Ser único na Terra é ser todos e por isso mesmo o Pascoal não era um gaiato diferente dos outros, o jeito para a bola, o mesmo; os dedos das mãos contados não davam mais nem menos que os dos seus companheiros.

  No entanto e apesar da felicidade geral que os da Terra sentem ao afirmar-se unos ou só mais um para fazer o todo, o Pascoal tinha um andar, um ar de quem se importava com estas coisas. E de quem importava mais do que todas as coisas.

  A facilitar, tinha na avó Roberta uma motivação como se vêem poucas, para seguir de calcanhares bem firmes no chão e nariz levantado no ar, bem acima dos demais. Os seus pais tinham umas terras, coisa pouca, uma azeitona para o lagar, dois ou três porcos, um nadinha de horta. Pais já quando a esperança de o ser se acabara, tinham tomado o ofício de caseiros na Quinta Nova e trazia-se pois o menino criado com requintes de fidalgo pela avó, velha como as entranhas da Terra, nas ruas da aldeia, seu palácio.

  Os pés cresceram em sapato, a gola dos casacos o taparam da chuva e do frio e sempre a velha Roberta tinha para ele no seu regresso da escola ou da vadiagem, uns brinhóis acabadinhos de fritar, um caldinho de galinha quente com os pequenos ovos cozidos a emergirem na tigela de barro ou ainda uns bolinhos fintos com licor de poejo que "um dia não são dias e o menino tem de se criar". Na venda do Carrasquinho se a viam entrar, já se sabia que ninguém de lá saía sem ouvir bem a história do seu príncipe, um pequeno milagre que Deus ou as artes mágicas lhe entregaram para que fizesse dele um homem. Mas não um homem qualquer. Qual! O seu Pascoal, nascido que foi no Domingo de Ramos se não se estava mesmo a ver, que estavam para ele guardadas grandes coisas na Terra. As comadres riam-se e encolhiam os ombros. A Ti Ana do Paulino de uma vez bem se apoquentou com ela eram os netos anda uns fedelhos de cueiros. Tudo por modo de um comentário da velha Roberta ao neto da outra pobrezinho, que lhe parecia um enfezado, as pernas umas caninhas, quando comparado com o seu Pascoal, um rapagaço, de andar firme e olhar decidido.

  O moço por sua vez cresceu mesmo em imponência, ombros largos, voz rouca, aos treze anos apresentava já os primeiros sinais do que viria a ser um bigode escuro, cerrado sem o qual nunca mais foi visto, moda rara nestas partes da Terra. Na escola, Dona Lurdes tratava-o nas palminhas. Muito possivelmente seduzida pelas alcofas cheias de morcelas e cacholeiras, melões e tomates maduros e um punhadito ou outro de feijão meloal que a velha Roberta lhe fazia chegar de ora em quando pela porta do quintal da casa de professora.

  Não que fosse mandrião ou que tivesse pouca inclinação para aprender, o Pascoal impacientava-se antes com o tempo que passava sentado atrás da carteira, imóvel, quando o que mais queria era andar pelas ruas a mostrar as suas botas novas, toc-toc-toc, no chão asfaltado do largo, ou a correr em direcção à ribeira e de lá pescar o maior achigã que pudesse para vir exibi-lo depois aos companheiros, aos vizinhos, a toda a gente.

  O Pascoal era corpo, era ímpeto, um furacão. Por isso mesmo não seria de estranhar que o Pascoal escolhesse uma mulher à altura, chegada a hora de arranjar namoro. Pois nisso, o Pascoal foi mais longe que qualquer um na Terra ou nas terras fora dela. A Lídia era a filha de um caixeiro-viajante. O pai vendia tarecos, panelas, tachos, facas, copos de latão, numa carroça de terra em terra, sem terra que fosse sua. Conheceram-se na Aldeia do Meio em Junho quando o Pascoal foi para lá desafiado para uma caçada. A Lídia estava montada numa carroça a apregoar tudo o que o seu pai, doente e afónico, já não conseguia vender sozinho. Vestia mal, roupa um pouco sovada do uso, cabelo mal amanhado, não havia vaidades na hora de trabalhar. Só que para o Pascoal lá da Terra, foi como ver o rosto de Deus, O pescoço alto, fino, as pernas longas sob a saia arregaçada, a trança desfeita, mechas de cabelo forte, ruivo a encaracolar por fora da fita, um retrato que fazia de Lídia um espaço inteiro, sem vazios a ocupar o Pascoal por completo.

  Na Terra não se falava de outra coisa: o portentoso Pascoal, benção do Domingo de Ramos, fugira com a filha do caixeirinho. Não havendo desfeita nisso, riem-se no entanto os homens, cochicham as mulheres: quanto mais alto se sobe...
E a Terra é dura. Implacável. Regressam a ela todos os que são dela.

  A velha Roberta emudeceu. O dia fez-se noite e enquanto fervia umas sopinhas de tomate com batatas na panela de ferro junto ao lume, pôs-se a cismar no triste destino que pôs afinal o seu Pascoal no mais comum dos trilhos da Terra. Caiu de borco ali mesmo e nunca mais voltou a falar. A filha recolheu-a na sua casa e o casamento lá acabou por se fazer. Todos se conformaram e a Terra engoliu a grandeza do Pascoal. Deu-lhe a vida não de um, mas de todos os que a habitam.

  Afinal, quem na Terra não teve o seu destino ditado pelo Amor?
Credits: Henk Heijmans in Pinterest

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Meninos da Terra

Ao Miguel: pela honra que é ver um homem a nascer de um menino.
                                                                               

  Os donos da Terra não são os senhores dos montes, dos campos a perder de vista, delimitados aqui e ali pelos muros de pedra levantada do solo. Quem manda por estes lados não é o senhor do solar no centro da vila ali a dois passos, pois não.
Este chão é pertença dos verdadeiros reis da Terra: os meninos-homens que ganharam as ruas, os bandos de rapazes que as percorrem de fio a pavio desde que o dia é dia até que a noite se esgueire por debaixo da Terra. Eles aí vão: o Inácio, o Joaquim, o Zé Miguel, o Galito, o Petanca, o Papa-bichos, o Corre-mundos...


  Invadem a aldeia com a sua algazarra, cortam as esquinas com seus aros e varas, bolas de pano, corridas de pneus, jogos de guerra. São homens pequenos e muitos deles já trabalham, outros estão a começar a deitar corpo, a sonhar acordados.
Ouviram as primeiras letras e já sabem fazer versos, rimas de namorados. Calçam botas, vestem coletes esterlicadinhos para irem em grupo, aos bailes da sociedade. Põem-se à porta da padaria, a morder palhinhas, a cheirar o ar quente, de moedas contadas, à espera que a porta abra para serem os primeiros a ferrar o dente num bolo folhado, num olhinho de mel.

  Há um que é filho do mestre da música, é o Panças: anda a aprender o acordeão. Parece um homem do alto dos seus doze anos.  Os outros acompanham-no com vozes a tremerem entre a idade que têm e a que querem ter. Carregam a lenha às mães, fazem mandados na venda para as avós, assobiam orgulhosos de machadinha nas mãos enquanto aprendem a podar videiras, a enxertar oliveiras, a matar um porco e tudo o mais que os pais lhes possam ensinar, que dois braços em casa querem-se é para trabalhar.

  Mas os meninos de pele morena, cabelos fartos, olhos de azeitona bical e buço tímido querem antes os braços para saltar ao alho, para puxar a fisga com força e atirar aos pássaros. Fazem-se fortes, a correr pelos campos infinitos, pelos horizontes profundos, tão longínquos que os fazem crer que eles próprios são invencíveis. Como o ar que respiram, como o sol que lhes cobre as cabeças, os chapéus de abas ou os bonés de feltro.

  Fazem lutas corpo a corpo,entesam os músculos  joelhos esgravatados, narizes a sangrar, as pastas da escola a voarem por todo o lado, para num assobio, darem tudo por acabado e lançarem-se à água, nus em pêlo, numa irmandade indizível de crianças a fazerem-se adultos com a mesma vontade, a mesma gana de viver, o mesmo ímpeto com que as águas da ribeira galgam as margens e alagam a Terra durante as chuvadas.

  No avesso de um menino vive já o pai dos seus filhos, o marido da sua mulher, latejam já as pernas que hão-de caminhar sobre a Terra dia após dia num vagar reconfortante de quem cumpre a sua jorna, de quem sabe que encaixa. De quem dá e recebe vida.

  E são os gaiatos correndo pelos caminhos, calcando bem o chão que os acolhe quem dá à Terra o seu sustento, fazendo dela a casa de outros mais que hão-de vir. Para que não se perca nunca a infância dos homens.