"A única forma de chegar ao impossível é acreditar que é possível."
Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas
É nas horas frias da noite, na boca aberta da madrugada, dizem, que aparece o Zé do Diabo. Tem um capote largo e escuro debaixo do qual esconde as crianças incautas que trata de roubar aos pais pesarosos.
É porém, durante o dia e junto à ribeira que é preciso cautela com a velha Micaela. Tem a cara moída da velhice maior que a do mundo e umas garras que puxam as canelas dos mais distraídos da margem directamente para dentro de água.
É preciso cuidado ainda com o leve-leve que dá quando os bailes acabam e a bebida assenta ou não. O João da Eira pode jurar que viu o pai desaparecer no ar, assim tal qual, deu-lhe um embaço e foi-se para não mais voltar.
Rezam-se novenas às sextas-feiras por alma de quem mais não pode. Ao mesmo tempo fazem-se uns nós de palhinha por baixo do assento do namorado que nunca mais se decide a casar. Baptizam-se os meninos debaixo dos olhos do vigário e da santa cruz para à noite, os entregar à lua nova no céu imenso da noite - que só pode ser ali a morada de qualquer deus.
São da Terra as histórias que animam os serões, que aceleram o passo até dos mais corajosos que vão do largo do mercado para as suas casas no fim da feira.
Dos bruxos e virtuosas ninguém fala. Esses são curandeiros, bençãos disfarçadas em cara de gente. Deitam os óleos, aplicam unções que nunca chegam a ser extremas e fazem chás. Tiram os males do corpo quando o corpo está pronto para se entregar. Que para tudo é preciso fé e horas de dias e noites a passar diante dos olhos.
Nascem as mulheres e os homens desta Terra já com o sinal da cruz na testa para depois pousarem os pés nela pela primeira vez e descobrirem que ela vai menos povoada de gente que de seres fantásticos, madrinhas de luz, homens de preto, almas penadas, santos que não se elevam porque não largam o seu chão, É uma religião tão cá da Terra a nossa que se deveria chamar antes semente ou raiz.
Se morre um marido à sua mulher, as lajes não se lavam, o cabelo não se penteia e volta-se as costas à porta. Se morre um filhinho- e não há religião que console desta traição- é natural que os pais variem. Não destapam nunca mais a cabeça. Todos enlutam e conforme a dimensão da dor, o luto avança ainda mais pelo corpo, deixando às vezes só uma nesguinha de vida perto dos olhos.
Na Terra a família é só uma e uma benção para mim é uma benção para todos, uma desgraça geral é como uma dor só minha. A Terra que tanta terra comeu na poeira dos dias através dos tempos, sussurra entre dentes as suas orações. Que não são a este ou àquele santo ou um apelo a um Deus que tão longe vive. São antes impulso, chamada entoada aos irmãos e irmãs que vivem na mesma energia, que marcham com os mesmos pés, nas mesmas labutas, com as mesmas dores e alegrias.
Somos um só por aqui e essa é que é a magia da Terra.
Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas
É nas horas frias da noite, na boca aberta da madrugada, dizem, que aparece o Zé do Diabo. Tem um capote largo e escuro debaixo do qual esconde as crianças incautas que trata de roubar aos pais pesarosos.
É porém, durante o dia e junto à ribeira que é preciso cautela com a velha Micaela. Tem a cara moída da velhice maior que a do mundo e umas garras que puxam as canelas dos mais distraídos da margem directamente para dentro de água.
É preciso cuidado ainda com o leve-leve que dá quando os bailes acabam e a bebida assenta ou não. O João da Eira pode jurar que viu o pai desaparecer no ar, assim tal qual, deu-lhe um embaço e foi-se para não mais voltar.
Rezam-se novenas às sextas-feiras por alma de quem mais não pode. Ao mesmo tempo fazem-se uns nós de palhinha por baixo do assento do namorado que nunca mais se decide a casar. Baptizam-se os meninos debaixo dos olhos do vigário e da santa cruz para à noite, os entregar à lua nova no céu imenso da noite - que só pode ser ali a morada de qualquer deus.
São da Terra as histórias que animam os serões, que aceleram o passo até dos mais corajosos que vão do largo do mercado para as suas casas no fim da feira.
Dos bruxos e virtuosas ninguém fala. Esses são curandeiros, bençãos disfarçadas em cara de gente. Deitam os óleos, aplicam unções que nunca chegam a ser extremas e fazem chás. Tiram os males do corpo quando o corpo está pronto para se entregar. Que para tudo é preciso fé e horas de dias e noites a passar diante dos olhos.
Nascem as mulheres e os homens desta Terra já com o sinal da cruz na testa para depois pousarem os pés nela pela primeira vez e descobrirem que ela vai menos povoada de gente que de seres fantásticos, madrinhas de luz, homens de preto, almas penadas, santos que não se elevam porque não largam o seu chão, É uma religião tão cá da Terra a nossa que se deveria chamar antes semente ou raiz.
Se morre um marido à sua mulher, as lajes não se lavam, o cabelo não se penteia e volta-se as costas à porta. Se morre um filhinho- e não há religião que console desta traição- é natural que os pais variem. Não destapam nunca mais a cabeça. Todos enlutam e conforme a dimensão da dor, o luto avança ainda mais pelo corpo, deixando às vezes só uma nesguinha de vida perto dos olhos.
Na Terra a família é só uma e uma benção para mim é uma benção para todos, uma desgraça geral é como uma dor só minha. A Terra que tanta terra comeu na poeira dos dias através dos tempos, sussurra entre dentes as suas orações. Que não são a este ou àquele santo ou um apelo a um Deus que tão longe vive. São antes impulso, chamada entoada aos irmãos e irmãs que vivem na mesma energia, que marcham com os mesmos pés, nas mesmas labutas, com as mesmas dores e alegrias.
Somos um só por aqui e essa é que é a magia da Terra.