quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Chove Terra

"Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains within the sound of silence"
                                      
                                 Simon & Garfunkel, The Sound of Silence



Chove de rijo na terra. Chicotes de água açoitam as margens das ribeiras, os açudes ressequidos pelo abraço de brasa, opressivo do sol. Saltam, salpicam gomos cheios de água prenhes de arco-íris, espelhos transparentes do céu que os mandou.Vêm redondos, perfeitos como olhos de perdizes a invadir a planície e esparramam-se desenvergonhada e desordeiramente pelas fendas no solo, chegando ao seu fundo numa fusão infinita, cega e fundamental. 

  A Terra conhece água. Os que não são dela, dizem que não é assim. Não é verdade. Terra é água e dela vive. Em torno dela, isto é. 
Falta, abunda. Tira, dá. Destrói, cria. Com água se inundam os olhos de todas as Mães da Terra quando o peito se abre em sulcos como os do chão que pisam. Água é o que corre pela testa, por debaixo das boinas, lenços, de todos os Homens que não conhecem estações ou dias de cores diferentes. Água para parir, água para lavar, água para ungir, benzer, inundar de vida e de sagrado (e não é isto falar do mesmo?). 

  Água nas cantarinhas a saber a barro, tão fresca, tão renovada que se diria estar o dito utensílio em lugar de fonte jorrando água constante do centro da Terra. Água em baldes de lata atirados ao ar, desenhando curvas liquidas em redor das soleiras das portas que depois se esfregam com panos, vassouras até que brilhem muito mais que os astros e as entradas das vizinhas. Água para nadar, como se veio ao mundo, sentindo os barbos, bogas, achegãs roçarem as pernas, e os pés escorregando nas pedras musgosas a fazerem leito. 

  Chove com força, como um látego pesado no dorso da Terra. É tudo ou nada deste lado do rio. Este Sul que é mais sentido do que geográfico tem os extremos de um território inóspito mas apetecível; os desvelos de uma mãe carinhosa com mãos rugosas, ásperas mas com perfume de leite e mel, um toque de hortelã e poejo. Sul que sente ainda o cheiro do oceano e que se diz plano mesmo do seu ponto mais alto. Que deixa vir água do céu e a recebe como a um deus descido do Olimpo dignando-se a caminhar na Terra. 

  Só que quando chove neste Sul, é de verdade. Com uma intensidade, uma ânsia desconhecida noutras paragens. Uma vontade imensa de absorver a água toda que se não vier carregada, gorda, pesada, depressa desaparece na imensidão, nos vastos caminhos de terra da Terra.

  Lava-te pois Terra, faz lama nas ruas ladeadas de paredes brancas caiadas, abre as bocas dos ribeiros que as circundam e faz-lhes salpicos só de pirraça. Obriga as moças a calçarem as botas de borracha para irem à venda ou à missa, os rapazes a abrigarem-se no telheiro da escola ou os velhos a recolherem ao lar, por dentro do útero da cozinha de onde parecem jamais querer sair. Faz-te nova, avança. Lavra o teu chão e prepara-te para lançar as tuas sementes. Mais tarde as mandarás com beijos das abelhas nas flores, pelos bicos dos pássaros celestes a Terras fora de ti. 

  Sabes que é assim que se recomeça. Que se renasce. Água e Terra fazendo Vida. 


in: https://nit.pt/out-of-town/back-in-town/dark-sky-chuva-estrelas-alqueva
Créditos: http://www.miguelclaro.com/wp/ 

domingo, 6 de agosto de 2017

Laura e o Amor na Terra

      Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... 
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. 
Mas porque a amo, e amo-a por isso, 
Porque quem ama nunca sabe o que ama 
Nem por que ama, nem o que é amar...
Alberto Caeiro
  Às vezes Laura acordava com a sensação estranha e maravilhosa de que a manhã nascera para ela. Que, rebentando as frinchas das janelas, os intervalos do postigo e as dobras dos cortinados de renda vinha ansiosa, lamber-lhe o rosto, a manhã. "Sou tua" parecia dizer-lhe. "Toma-me e expande-me, transforma-me em dia claro, em invólucro da Terra."
Laura voltava a fechar os olhos e deixava-se usufruir um pouco mais, só um tudo ou nada, da languidez boa de se sentir amada, tocada de novo pela luz conhecida e perfeita da manhã.

  Janela aberta, portas em abraços para fora, Laura sorvia com cada poro, cada tira de pele o ar da manhã na terra. Que cheira a urze. A palha seca. A estrume. A dentes de leão e alfazemas. Cheira a roupa batida nas pedras da ribeira e a corar ao sol dos quintais. Cheira à canela e ao mel que se derretem por dentro dos bolos no forno de pedra na padaria.

  Cheira também a barro, namoro da terra com a água da chuva. E tem sabor. Sabor da poeira que se eleva dos caminhos, do ar metálico antes de soar o primeiro trovão ou dos restos de cinzas brancas do lar que se levantam e povoam os corpos, as línguas, fazendo lembrar que um dia, já foram brasa.

  Sentia Laura que a manhã lhe falava. Que lhe contava dos que foram e dos que estavam para chegar. De quem seriam os reis do baile da sociedade esse ano e da chegada do míldio à vinha do Monte Novo. Dos dias que se seguiriam e se mostravam inteiros aos olhos e aos ouvidos atentos de Laura que tantos já diziam ser virtuosa.
Sem compromissos reais com a Terra, Laura assumira no entanto uma ligação eterna, matrimónio indestrutível com o ar da manhã. Desde gaiata que ao levantar,punha um dedito no ar, fechava os olhos e tentava adivinhar a direcção do ar da manhã, o lado de onde viriam as novidades, o seguimento do dia pelo que conseguia ver primeiro dele com os olhos do coração.

  Ah o peito, o peito! Pudesse Laura expandir-se como os caminhos da Terra, lonjuras inexequíveis para os que sobre ela não caminham, seria pelo peito que a sua estrada começaria. Para Laura tudo era novo ou regenerado como os dias.No peito de Laura vivia Amor como vivia a luz da manhã, o ar fresco do orvalho e os tons dourados, roxos, vermelhos com que o seu mundo se erguia. Começar de novo. Ser nova todos os dias e os dias todos. 

  Acorriam a Laura todos os que de uma forma ou outra já tinham desistido. Ou de quem já todos haviam desistido. Começar, recomeçar. Tombar, levantar. Pedras, rochas, solos rugosos e secos a fazerem-se terra fértil, veios de vida com um nadinha de manhã sobre eles. Era tudo quanto bastava. E era o ar da manhã que os curava, dizia Laura. Ela própria um episódio confuso do Tempo que não sabia mais modo nenhum de lhe chegar, de a prostrar.

  Laura dava. E do dar, recebia e era abundante como a primavera e o sol da manhã. Também caía chuva. Muitas e muitas vezes colava-se o avental de Laura ao seu corpo perfeito, glorificando as suas formas, e ela sorria, satisfeita, dando graças pelo choro Divino que lhe permitia lavar, semear, colher, crescer, ser mais Laura. Outra vez começar, com as manhãs. Ser luz com elas. 

  Quarenta ciclos de doze meses de manhãs novas, mãos dadas, esperança orgulhosamente pendurada ao peito, morreram numa noite cerrada de um Inverno gelado. Não havia  estrelas, a lua escondera-se sob o nevoeiro cerrado e o corpo perfeito de Laura, cobrindo o espaço da cama, parecia ter o peito mais largo, os ombros expandidos, os ossos alargados, as narinas desesperadamente abertas. 

  Choraram por Laura na terra. Sabiam que a sua manhã não chegara e que nenhuma mais teria a luz que ela lhes emprestava. Calou-se pois o povo. Enviuvara a manhã.


por: https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/



domingo, 2 de abril de 2017

Terra Chão

"Vamos lá saindo
Por esses campos fora
Que a manhã vem vindo
pelos lados da Aurora..."

           Moda Popular Alentejo



A Terra chama ao chão. Vai assim de mansinho, com um jeitinho quase ausente, um sussurro ao de leve, um ar de que não quer, soprando na vida dos que vão, dos que ficam e querem ir, o ar quente que se ergue do chão em ondas ascendentes de calor opressivo ou frio contundente.

Irremediável o chão da Terra. Um sempre, sempre a tocar constante. Ao de leve primeiro, como um roçagar de dedos na pele de quem se quer, em violentos chamados e invasivos clamores depois, quando já nada mais resta senão o desejo do chão.

O chão seco atravessado de fendas, as veias da Terra, onde pousam passarinhos e nascem inusitadas flores, mimosas, papoilas, chagas-de-cristo. O chão que se converte em mar, que inunda o espaço entre o nada e o lado nenhum, que levanta um lençol de água a cobrir velhas azinheiras, oliveiras, carvalhos escuro.

O chão da Terra não tem nome. Conhece-se pela memória de cheiro que de repente nos invade as narinas, rebenta o coração. Não tem idade. Atinge em cheio os homens maduros, as senhoras da sua casa, as velhas exiladas e os meninos sem escolha. Ser do chão e ser da Terra são uma e a mesmíssima coisa. Uma coisa que é una com os passos dos que partem ou dos que com algum fio quebrado pelo caminho, são pertença da Terra de qualquer modo.

São do chão os que se emocionam ao pisá-lo. Ao ver-lhe as lonjuras, os rasgos, curvas discretas ou nalguns casos acentuadas, a desembocar em linhas finas de água ou vales, planícies louras ou roxas. Os que o amam recebem esse Amor de volta, que o chão é fiel, dedicado ainda que inconveniente, intempestivo, caprichoso. Todos os homens da Terra são pastores, lavradores neste chão. Amam-no com a determinação e empenho que se dedica a uma amante teimosa mas única e por isso indispensável. Todas as mulheres recolhem dele, mãos abertas no solo ou fechadas em concha, os frutos do amanhã, que hão-de parir e criar os filhos desta Terra. As crianças espojam-se nele, comem o seu pó, lavam-no com as suas lágrimas ou salpicos da ribeira. Os velhos deixam-no entrar pelos olhos dentro. Das soleiras das portas, dos quintais nas traseiras, absorvem-lhe a luz, a dureza, o movimento- só os tolos acham que a Terra não se move- e tranquilizam-se.

Todos sabem que tudo está certo quando se olha o chão, que está por debaixo dos pés é certo, mas que permite uma espinha direita, cabeça erguida. É digna a Terra e enquanto houver chão não há furto possível a esta condição. Na distância que há quando se passam dois rios ou um oceano para ir até onde a vida possível poderá ser melhor, surge muitas vezes a memória deste chão, recoberto das lajes da casa de entrada, da terra batida do largo da feira, do solo árido a tapetear o olival e então chora-se.

Sabe-se que há um chamado que é preciso cumprir. Volta-se à Terra, ao chão que é nosso e começa-se de novo, É assim na Terra: antes de haver homens, já havia chão.

https://m.facebook.com/RicardoZambujoPhotography/