Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Às vezes Laura acordava com a sensação estranha e maravilhosa de que a manhã nascera para ela. Que, rebentando as frinchas das janelas, os intervalos do postigo e as dobras dos cortinados de renda vinha ansiosa, lamber-lhe o rosto, a manhã. "Sou tua" parecia dizer-lhe. "Toma-me e expande-me, transforma-me em dia claro, em invólucro da Terra."
Laura voltava a fechar os olhos e deixava-se usufruir um pouco mais, só um tudo ou nada, da languidez boa de se sentir amada, tocada de novo pela luz conhecida e perfeita da manhã.
Janela aberta, portas em abraços para fora, Laura sorvia com cada poro, cada tira de pele o ar da manhã na terra. Que cheira a urze. A palha seca. A estrume. A dentes de leão e alfazemas. Cheira a roupa batida nas pedras da ribeira e a corar ao sol dos quintais. Cheira à canela e ao mel que se derretem por dentro dos bolos no forno de pedra na padaria.
Cheira também a barro, namoro da terra com a água da chuva. E tem sabor. Sabor da poeira que se eleva dos caminhos, do ar metálico antes de soar o primeiro trovão ou dos restos de cinzas brancas do lar que se levantam e povoam os corpos, as línguas, fazendo lembrar que um dia, já foram brasa.
Sentia Laura que a manhã lhe falava. Que lhe contava dos que foram e dos que estavam para chegar. De quem seriam os reis do baile da sociedade esse ano e da chegada do míldio à vinha do Monte Novo. Dos dias que se seguiriam e se mostravam inteiros aos olhos e aos ouvidos atentos de Laura que tantos já diziam ser virtuosa.
Sem compromissos reais com a Terra, Laura assumira no entanto uma ligação eterna, matrimónio indestrutível com o ar da manhã. Desde gaiata que ao levantar,punha um dedito no ar, fechava os olhos e tentava adivinhar a direcção do ar da manhã, o lado de onde viriam as novidades, o seguimento do dia pelo que conseguia ver primeiro dele com os olhos do coração.
Ah o peito, o peito! Pudesse Laura expandir-se como os caminhos da Terra, lonjuras inexequíveis para os que sobre ela não caminham, seria pelo peito que a sua estrada começaria. Para Laura tudo era novo ou regenerado como os dias.No peito de Laura vivia Amor como vivia a luz da manhã, o ar fresco do orvalho e os tons dourados, roxos, vermelhos com que o seu mundo se erguia. Começar de novo. Ser nova todos os dias e os dias todos.
Acorriam a Laura todos os que de uma forma ou outra já tinham desistido. Ou de quem já todos haviam desistido. Começar, recomeçar. Tombar, levantar. Pedras, rochas, solos rugosos e secos a fazerem-se terra fértil, veios de vida com um nadinha de manhã sobre eles. Era tudo quanto bastava. E era o ar da manhã que os curava, dizia Laura. Ela própria um episódio confuso do Tempo que não sabia mais modo nenhum de lhe chegar, de a prostrar.
Laura dava. E do dar, recebia e era abundante como a primavera e o sol da manhã. Também caía chuva. Muitas e muitas vezes colava-se o avental de Laura ao seu corpo perfeito, glorificando as suas formas, e ela sorria, satisfeita, dando graças pelo choro Divino que lhe permitia lavar, semear, colher, crescer, ser mais Laura. Outra vez começar, com as manhãs. Ser luz com elas.
Quarenta ciclos de doze meses de manhãs novas, mãos dadas, esperança orgulhosamente pendurada ao peito, morreram numa noite cerrada de um Inverno gelado. Não havia estrelas, a lua escondera-se sob o nevoeiro cerrado e o corpo perfeito de Laura, cobrindo o espaço da cama, parecia ter o peito mais largo, os ombros expandidos, os ossos alargados, as narinas desesperadamente abertas.
Choraram por Laura na terra. Sabiam que a sua manhã não chegara e que nenhuma mais teria a luz que ela lhes emprestava. Calou-se pois o povo. Enviuvara a manhã.
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...
Alberto CaeiroMas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...
Às vezes Laura acordava com a sensação estranha e maravilhosa de que a manhã nascera para ela. Que, rebentando as frinchas das janelas, os intervalos do postigo e as dobras dos cortinados de renda vinha ansiosa, lamber-lhe o rosto, a manhã. "Sou tua" parecia dizer-lhe. "Toma-me e expande-me, transforma-me em dia claro, em invólucro da Terra."
Laura voltava a fechar os olhos e deixava-se usufruir um pouco mais, só um tudo ou nada, da languidez boa de se sentir amada, tocada de novo pela luz conhecida e perfeita da manhã.
Janela aberta, portas em abraços para fora, Laura sorvia com cada poro, cada tira de pele o ar da manhã na terra. Que cheira a urze. A palha seca. A estrume. A dentes de leão e alfazemas. Cheira a roupa batida nas pedras da ribeira e a corar ao sol dos quintais. Cheira à canela e ao mel que se derretem por dentro dos bolos no forno de pedra na padaria.
Cheira também a barro, namoro da terra com a água da chuva. E tem sabor. Sabor da poeira que se eleva dos caminhos, do ar metálico antes de soar o primeiro trovão ou dos restos de cinzas brancas do lar que se levantam e povoam os corpos, as línguas, fazendo lembrar que um dia, já foram brasa.
Sentia Laura que a manhã lhe falava. Que lhe contava dos que foram e dos que estavam para chegar. De quem seriam os reis do baile da sociedade esse ano e da chegada do míldio à vinha do Monte Novo. Dos dias que se seguiriam e se mostravam inteiros aos olhos e aos ouvidos atentos de Laura que tantos já diziam ser virtuosa.
Sem compromissos reais com a Terra, Laura assumira no entanto uma ligação eterna, matrimónio indestrutível com o ar da manhã. Desde gaiata que ao levantar,punha um dedito no ar, fechava os olhos e tentava adivinhar a direcção do ar da manhã, o lado de onde viriam as novidades, o seguimento do dia pelo que conseguia ver primeiro dele com os olhos do coração.
Ah o peito, o peito! Pudesse Laura expandir-se como os caminhos da Terra, lonjuras inexequíveis para os que sobre ela não caminham, seria pelo peito que a sua estrada começaria. Para Laura tudo era novo ou regenerado como os dias.No peito de Laura vivia Amor como vivia a luz da manhã, o ar fresco do orvalho e os tons dourados, roxos, vermelhos com que o seu mundo se erguia. Começar de novo. Ser nova todos os dias e os dias todos.
Acorriam a Laura todos os que de uma forma ou outra já tinham desistido. Ou de quem já todos haviam desistido. Começar, recomeçar. Tombar, levantar. Pedras, rochas, solos rugosos e secos a fazerem-se terra fértil, veios de vida com um nadinha de manhã sobre eles. Era tudo quanto bastava. E era o ar da manhã que os curava, dizia Laura. Ela própria um episódio confuso do Tempo que não sabia mais modo nenhum de lhe chegar, de a prostrar.
Laura dava. E do dar, recebia e era abundante como a primavera e o sol da manhã. Também caía chuva. Muitas e muitas vezes colava-se o avental de Laura ao seu corpo perfeito, glorificando as suas formas, e ela sorria, satisfeita, dando graças pelo choro Divino que lhe permitia lavar, semear, colher, crescer, ser mais Laura. Outra vez começar, com as manhãs. Ser luz com elas.
Quarenta ciclos de doze meses de manhãs novas, mãos dadas, esperança orgulhosamente pendurada ao peito, morreram numa noite cerrada de um Inverno gelado. Não havia estrelas, a lua escondera-se sob o nevoeiro cerrado e o corpo perfeito de Laura, cobrindo o espaço da cama, parecia ter o peito mais largo, os ombros expandidos, os ossos alargados, as narinas desesperadamente abertas.
Choraram por Laura na terra. Sabiam que a sua manhã não chegara e que nenhuma mais teria a luz que ela lhes emprestava. Calou-se pois o povo. Enviuvara a manhã.
por: https://www.facebook.com/RicardoZambujoFotografia/ |