Do café negro se
faz o dia claro. Nasce com os homens num estalido de língua no céu-da-boca,
seco, amargo, pungente, a gritar ao mundo que o dia começou e é para se viver.
Do café negro, dos negros, se fazem mil misturas mais ou menos puras, mais ou
menos corruptas como os homens e as raças que são compostas por eles. Cá na Terra
o café sabe a família também, às noites no lar, por dentro dele, a dois ou a
muitos. Sabe a brasa apagada que se deitou no fundo da chocolateira para que se
beba sem borras, sem terra. O café é companheiro, é fiel nos seus gostos e vai
especialmente bem com o doce dos bolos no serão mortiço ou com a firmeza do pão
a acompanhar toucinho, o queijo quando os há, a qualquer hora. É caseiro o café
da Terra. Não se bebe na rua. É convite para entrar e sentar à mesa já posta. É
remate lógico de uma mesa nem sempre farta mas sempre bem rodeada de gente e de
conversa. Em boa verdade, todos os que chegarem têm lugar à mesa. Ainda que a
mesa não seja mais do que uma velha amassadeira onde mal cabe a tigela para
todos comerem dela. Ainda que o caldo seja só um perfume de ervas e azeite em
que se banham repetidas fatias de pão que se multiplica num milagre de casa. O
café da noite nem bem café se chama. Traz com ele moídas, a chicória, a cevada,
para dar gosto de cereal, encher barriga e aliviar o custo deste primeiro ouro
negro. Vende-se em sacas de pano ou latões na venda, na mercearia e é medido em
arráteis.
As memórias da
Terra confundem-se com o aroma do café. No final das festas, em cima de
tabuleiros de paninhos bordados, servem-no aos últimos convidados as mães das meninas-rainhas de vestidos coloridos.
Servem-nos os que restam compostos, da família destroçada num velório que se
prolonga invariavelmente, pela noite fora. Bebem-no os velhos e os novos, junto
ao crepitar da lenha ou no que sobrou do borralho na lareira que é sala, que é
divisão da casa. Haverá alguns que o beberão de manhã e os que o fazem não o
deixam entrar sozinho quente, dentro do corpo. Vertem-no numa tigela e cortando
com paciência o pão em pedaços mais pequenos que os dedos de uma mão, juntam-nos
com um sopro de açúcar e algumas voltas de uma colher. O café dança nos salões de
baile com as moças solteiras - que o vinho não é para elas. O café canta e chia
nas cafeteiras de ferro em cima das trempes nos fogões. Chá é para doentes,
café é vida, é urgência, é cheiro da terra também.
Depois do café pousam-se as
cartas de jogar, lavam-se as chávenas, deita-se a família e dorme a Terra.
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