sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

As idades da Terra

As idades da Terra não contam das rugas sulcadas no rosto das velhas. Não falam das malas vazias de coisas e de sonhos nos cais de embarque. Os dias que correram na Terra, de terra para terra, não falam dos outros que passam sobre os desenganos de Amor, os vestidos de noiva pendurados nos guarda-fatos eternamente, as solas dos sapatos gastas nos salões de baile da sociedade recreativa, ou sequer do ir e vir pendular dos pés deste ou daquele homem que junto a muitos outros, vai construindo mais um pedaço de estrada. 

Não. A Terra não se compadece de Amores pequenos, paixões exacerbadas, das vistas de uma janela ou do som de um acordeão triste e solitário a cortar o céu da noite. O lento viajar dos ponteiros do relógio a que se chamou vida, deu à Terra as estações, a chuva correndo pelo solo, o barro mole a formar montes, socalcos e obras que não havia. O tempo deu à Terra as fendas por entre as quais nascem bravamente coroas de beldroegas, mimosas e sálvia, salpicos de cor num manto duro e opaco do chão que parecia estéril.
A Terra girou e não saiu do mesmo lugar, mexeu-se para ajeitar os seus contornos, para reescrever a sua história. A Terra que sofreu o impacto de expelir os primeiros homens do seu centro, viu-os espalharem-se como ondas sísmicas por diversos lugares, a fazer crescer a Terra para tantas outras terras, que já nem nomes há que cheguem para designá-las todas. A panelinha de barro onde ferve o feijão-careto com a abóbora, num caldinho que chia junto das brasas, do almoço para o jantar, já alimentou mais bocas do que aquelas que a Terra pariu. O milagre repete-se dia após dia, ano após ano e o fumegar da panela é tão lato, que a Terra chega às montanhas de neve, para lá das cordilheiras, voa e assenta em casas de telhados negros que não sendo da Terra, guardam os filhos dela quais amas zelosas ou anjos em céus distantes.
A idade da Terra é já muita e quem nela e dela vive nada parece querer contar em particular. Só que a Terra está viva e quanto mais a idade estica e a Terra avança, mais esbatidas ficam as histórias das gentes que são sempre anónimas. A Terra é o que é e não parece já lembrar-se dos meninos paridos debaixo das azinheiras em meio da jorna. Ou das canjas de galinha ou galo, sacrificados por hora da quarentena da mãe recente. Ou ainda das fatias paridas, só de pão e de ovo, em honra da que pariu e que deu à Terra mais dois braços para a trabalharem, mais duas pernas para a calcorrearem.
A Terra é grande e não retém nela os versos à desgarrada, subtis namoros dos bailes de fim de ano ou do fim dos trabalhos, dos quais se sai directamente para outros, se tudo correr bem aos que cá vivem. É grande demais a história da Terra. Não pode lembrar-se de todas as cartas de todas as madrinhas de guerra, de todos os meninos que se fizeram homens e velhos ou que não voltaram inteiros dessas guerras que não lhes pertenciam. Não se pode pedir à memória da Terra que guarde todos os dias felizes em que cheira a sabão-macaco e à água fresca lançada na soleira das portas, ou o sabor da massa frita nos dias de Feira ou sequer a cor das fitas dos cabelos das raparigas, debaixo das mantilhas nas missas de tantos e tantos Domingos.
A Terra de tão velha, é hoje uma Terra nova. A música que se dança, é agora outra, são novos também os pés ricamente calçados a bater no chão da praça durante as festas de Verão. A água dos caldos cheira mais vezes a carne e há automóveis nas ruas de pedra da Terra onde os gaiatos cada vez brincam menos. Olhada de longe, a Terra é vasta, é Norte, é Sul e estende-se por todos os cantos onde a vida habita.
No entanto, eu escolho olhar a Terra por dentro, ver o que ela não conta nas idades do tempo que vai passando por ela. Escolho a luz do candeeiro a óleo para ver cada retalho ao pormenor; abro bem as narinas para deixar entrar o cheiro da terra molhada, o fumo que se liberta das paredes húmidas e da roupa de quem passa. Abro o peito e canto aquela canção que ouvi num tempo que já não era o dela; escuto os sons dos ralos e dos rouxinóis que povoam os campos. Caminho devagar, com os calcanhares bem firmados num chão a que quero pertencer, onde quero ganhar raízes profundas para que, como as árvores da minha Terra, saiba procurar a fonte quando tudo parecer secar.









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