quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Das dores se fazem caminhos.

  Os passos que moem a terra, o restolho, a lama, são passos cadenciados, cansados, pesados. São parte do caminho, são o som da estrada. Por cada passo marchado, na rota de uma jornada longa, se ganha mais um troço de chão, se desvanece mais um fôlego dos homens da Terra. Sobem, descem, os pés batem firmes na firmeza do solo. A estrada é a única vítima dos acessos de raiva destes pés castigados, cobertos com botas de couro. Revestimento duro para a dureza de uma vida que não o é. Que não será mais do que o acumular de horas nos caminhos secos ou lamacentos que percorrem os campos e que dispersam os da Terra por todos os lugares onde o trabalho é rei. São botas ou cascos dos que não vendo, não sabem e a quem nem é destinado o desmerecimento concedido às bestas. 


  Choram os homens e as mulheres, os machos e as fêmeas, de negro como corvos salpicando os campos, vão andando e cantando as dores de não ser. Saem em bando antes do sol rasgar o céu e começar a arder ou com a água a escorrer pelo cachaço, incessante, sem tréguas ou piedade. Reúnem-se em praças, nos largos, novos e velhos, todos hão-de servir para o trabalho que nunca é emprego.Carregam os sacos, as trouxas e só conhecem verbos de obedecer. Revoltam-se apenas com as pedras do caminho, choram a fome com lágrimas que se misturam com a chuva ou que evaporam com o calor. Avançam, determinados, vencendo as distâncias, as lonjuras de que é feita a Terra e sentindo secretamente e a medo, nesta vitória, uma porta aberta para muitas outras que sabem- mas não dizem- que hão-de vir.
  Doem as pernas, postas ao serviço dos patrões também; doem as barrigas que reclamam, mais do que os homens, da mediocridade do que recebem para em troca, manterem o resto do corpo de pé; doem corações de amores humanos, de pais de filhinhos à chuva, de amores que não se cumprem senão nos intervalos da estrada. 
   E no entanto, canta-se. Canta-se tudo o que dói. Cantam-se os dias que parecem e não são todos iguais. Canta-se a tristeza de não se saber mais. Canta-se também a alegria de se ser da Terra, de pertencer a ela, de fecundar caminhos que pareciam inférteis. Cantam-se os cheiros da lareira apagada, a cinza tantas vezes lavada e reposta naquele lugar de sempre. Canta-se o sabor das beldroegas, dos espigos, da salsa, de um qualquer vestígio de sabor que trespasse o seco árido do chão e se converta em ceia sagrada noite após noite.
  Prende-se o cante à Terra, as botas e os pés aos caminhos e ainda que passem anos, só muda a cara das gentes. Para muitos, ir e vir nos caminhos longos, é parte da jorna, que é parte da vida. E a vida canta-se, ainda que se chore.





                                                 

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