sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Às Mães da Terra.

  Levanta-se a Mãe no escuro da casa, atravessa as camas, percorre os cantos, evita os ecos dos tectos altos. Parece um gato a Mãe, que mexe o corpo ao jeito da casa, que adapta os seus contornos aos contornos que há nela. O avental cobre um ventre que não cessa de gerar, o lenço atado na cabeça, sem mechas de cabelos soltas que poluam o lar de lajes lavadas ou o pão da manhã. 

  Pé ante pé, sai a Mãe calada, pela porta, junto da qual foi colocada a lenha, o balde de lata para a água, a vassoura, algo que a faça sair e espreitar o campo que se estende, meter as planícies pelos olhos adentro, intuir o dia pelo sabor do primeiro vento. Recolhe-se depois já transformada, é agora formiga operária, de xaile cobrindo os ombros, a vassoura firme entre os dedos como se fora varinha de condão, mudando as vidas dos meninos e dos homens que nunca ouviram histórias de fazer sonhar.
Segura os feixes de paus e quebra-os, pressionando-os com força com os joelhos, junta-os, sopra-lhes o fogo da vida e numa labareda, renasce o lar, começa o dia. Aninha num canto junto ao calor do fogo, a panela de barro com água, a chocolateira para o café. Transforma um pão que é rocha, guardado no fundo da arca, em caldo de leite quente migado para os mais pequenos ou tiborna de vinho e açúcar para sustentar os corpos maiores.


  Dedos com dedos, mãos entrelaçando mãos, bocas que se juntam num beijo onde tudo é possível, vai a Mãe, de coração apertado, despertar os filhinhos que sonham com as bonecas de cartão ou de pano, com as maçãs da Feira de Agosto. As roupas esperam os corpos para ganhar vida, dobradas com minúcia aos pés das camas. O homem levanta-se e dá a sua benção às quatro paredes grossas que escondem tanta miséria, que guardam tantas alegrias.


  Soam os sinos, grita alguém do centro da praça despertando o povo, que anda adormecido. Mal sabe quem grita que há muito tempo que se move a Mãe dentro de casa, como uma brisa matinal, delicadamente polindo, preparando, ajeitando todas as coisas como num movimento harmónico, como uma dança natural entre uma mulher e o seu lar.


  Segue-se uma hora de caminho que às vezes é mais, muito mais, antes que o sol venha cumprimentar os que vivem debaixo dele. Canta a Mãe, faz a viagem mais curta se mantiver os olhos no chão e o coração nos versos que traz por dentro. Trabalha curvada todo o dia, vive curvada. São tantos os pesos que chega a parir curvada nas curvas do tempo e da estrada. Não reclama a Mãe. Não exige. A Mãe dá e neste dar é que recebe, é que se cura quando está doente, é que se levanta quando cai.

  Regressa cansada, quase sem coragem para pensar que precisará da mesma hora e dos mesmos passos para voltar. Carrega com os filhos no colo, junto ao peito, a pé, que na Terra não há outro modo de vencer as distâncias. No fim do dia, dói-lhe mais ver a chuva entrar pela manta do menino ou o seu choro da fome que não acaba, do que as pernas ou os braços, que afinal de contas, não são mais do que instrumentos de recolha dos seus junto de si. Quando chega, a Mãe ainda lava, limpa, cozinha, arruma, remenda, borda, enche a casa com as suas histórias e com a suas canções de embalar.

  A Mãe da Terra cheira a alecrim, a rosmaninho, cheira à terra seca e quente, fumegante após as primeiras chuvas. Cheira a pão cozido no forno, cheira a mel, a azeite e a canela. A Mãe é da Terra negra e é negra como ela num luto que não acaba porque na Terra todos somos parentes. A Mãe da Terra sabe a corpo lavado com água do poço e sabão azul, sabe ao vento frio que ajuda a secar e a corar os lençóis brancos lavados no ribeiro. A Mãe é parte da Terra, do seu ventre em chamas vermelhas, foram paridos os homens que caminharam sobre ela. Da sua boca saíram os beijos que antecederam todas as guerras e as longas partidas.

  E quando tudo acaba, é aos braços dela que voltamos, num embalo eterno de quem cumpriu o seu dever para com a Terra.














quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Das dores se fazem caminhos.

  Os passos que moem a terra, o restolho, a lama, são passos cadenciados, cansados, pesados. São parte do caminho, são o som da estrada. Por cada passo marchado, na rota de uma jornada longa, se ganha mais um troço de chão, se desvanece mais um fôlego dos homens da Terra. Sobem, descem, os pés batem firmes na firmeza do solo. A estrada é a única vítima dos acessos de raiva destes pés castigados, cobertos com botas de couro. Revestimento duro para a dureza de uma vida que não o é. Que não será mais do que o acumular de horas nos caminhos secos ou lamacentos que percorrem os campos e que dispersam os da Terra por todos os lugares onde o trabalho é rei. São botas ou cascos dos que não vendo, não sabem e a quem nem é destinado o desmerecimento concedido às bestas. 


  Choram os homens e as mulheres, os machos e as fêmeas, de negro como corvos salpicando os campos, vão andando e cantando as dores de não ser. Saem em bando antes do sol rasgar o céu e começar a arder ou com a água a escorrer pelo cachaço, incessante, sem tréguas ou piedade. Reúnem-se em praças, nos largos, novos e velhos, todos hão-de servir para o trabalho que nunca é emprego.Carregam os sacos, as trouxas e só conhecem verbos de obedecer. Revoltam-se apenas com as pedras do caminho, choram a fome com lágrimas que se misturam com a chuva ou que evaporam com o calor. Avançam, determinados, vencendo as distâncias, as lonjuras de que é feita a Terra e sentindo secretamente e a medo, nesta vitória, uma porta aberta para muitas outras que sabem- mas não dizem- que hão-de vir.
  Doem as pernas, postas ao serviço dos patrões também; doem as barrigas que reclamam, mais do que os homens, da mediocridade do que recebem para em troca, manterem o resto do corpo de pé; doem corações de amores humanos, de pais de filhinhos à chuva, de amores que não se cumprem senão nos intervalos da estrada. 
   E no entanto, canta-se. Canta-se tudo o que dói. Cantam-se os dias que parecem e não são todos iguais. Canta-se a tristeza de não se saber mais. Canta-se também a alegria de se ser da Terra, de pertencer a ela, de fecundar caminhos que pareciam inférteis. Cantam-se os cheiros da lareira apagada, a cinza tantas vezes lavada e reposta naquele lugar de sempre. Canta-se o sabor das beldroegas, dos espigos, da salsa, de um qualquer vestígio de sabor que trespasse o seco árido do chão e se converta em ceia sagrada noite após noite.
  Prende-se o cante à Terra, as botas e os pés aos caminhos e ainda que passem anos, só muda a cara das gentes. Para muitos, ir e vir nos caminhos longos, é parte da jorna, que é parte da vida. E a vida canta-se, ainda que se chore.





                                                 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Do café negro se faz o dia claro.

Do café negro se faz o dia claro. Nasce com os homens num estalido de língua no céu-da-boca, seco, amargo, pungente, a gritar ao mundo que o dia começou e é para se viver. Do café negro, dos negros, se fazem mil misturas mais ou menos puras, mais ou menos corruptas como os homens e as raças que são compostas por eles. Cá na Terra o café sabe a família também, às noites no lar, por dentro dele, a dois ou a muitos. Sabe a brasa apagada que se deitou no fundo da chocolateira para que se beba sem borras, sem terra. O café é companheiro, é fiel nos seus gostos e vai especialmente bem com o doce dos bolos no serão mortiço ou com a firmeza do pão a acompanhar toucinho, o queijo quando os há, a qualquer hora. É caseiro o café da Terra. Não se bebe na rua. É convite para entrar e sentar à mesa já posta. É remate lógico de uma mesa nem sempre farta mas sempre bem rodeada de gente e de conversa. Em boa verdade, todos os que chegarem têm lugar à mesa. Ainda que a mesa não seja mais do que uma velha amassadeira onde mal cabe a tigela para todos comerem dela. Ainda que o caldo seja só um perfume de ervas e azeite em que se banham repetidas fatias de pão que se multiplica num milagre de casa. O café da noite nem bem café se chama. Traz com ele moídas, a chicória, a cevada, para dar gosto de cereal, encher barriga e aliviar o custo deste primeiro ouro negro. Vende-se em sacas de pano ou latões na venda, na mercearia e é medido em arráteis.


As memórias da Terra confundem-se com o aroma do café. No final das festas, em cima de tabuleiros de paninhos bordados, servem-no aos últimos convidados as mães das meninas-rainhas de vestidos coloridos. Servem-nos os que restam compostos, da família destroçada num velório que se prolonga invariavelmente, pela noite fora. Bebem-no os velhos e os novos, junto ao crepitar da lenha ou no que sobrou do borralho na lareira que é sala, que é divisão da casa. Haverá alguns que o beberão de manhã e os que o fazem não o deixam entrar sozinho quente, dentro do corpo. Vertem-no numa tigela e cortando com paciência o pão em pedaços mais pequenos que os dedos de uma mão, juntam-nos com um sopro de açúcar e algumas voltas de uma colher. O café dança nos salões de baile com as moças solteiras - que o vinho não é para elas. O café canta e chia nas cafeteiras de ferro em cima das trempes nos fogões. Chá é para doentes, café é vida, é urgência, é cheiro da terra também. 

Depois do café pousam-se as cartas de jogar, lavam-se as chávenas, deita-se a família e dorme a Terra.


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O diabo dos bolos

  O diabo entra no corpo da gente de mais de mil maneiras possíveis. Ter o diabo no corpo é pior do que passar-se para o lado dele de vez. Não há forma de saber ou aviso prévio quando o diabo do corpo se põe a jeito de lhe entrar o diabo dentro. E o pior é que quando ele vem e se instala, é já difícil saber o chegou primeiro, se o corpo, se o diabo que entrou nele. E há tantas maneiras de o ter dentro, como se o corpo fora um pomar rico em frutas doces e sumarentas ou um oceano pejadinho de peixe firme e luzidio.

  Com bolos se enganam os tolos. É com bolos também que se enganam os que não se dizem gulosos, os que não podem ou os que não devem. Se são bolos, são doces, aligeiram os reveses dos dias tão amargos. São secos os bolos, são enxutos, ao contrário das lágrimas e do suor que caem por debaixo dos lenços, que escorrem pela aba dos chapéus. São bolos  do que há e do que não há: açúcar, só um nadinha, que as extravagâncias não são para os da terra. Do mel e da canela se faz a boca mais doce e só o limão, azedo e pungente, vem lembrar que não é tudo tão doce como se previa. O azeite faz a ligação do que não parecia alguma vez poder ligar-se.
  Dos dias iguais uns aos outros, estrada acima,montes abaixo, nasce um ou outro que por ser de festa, se permite uma dentada mais doce. E embora a festa não dure sempre, o diabo dos bolos é que abrem o caminho ao diabo para entrar e comer-nos por dentro. E com os bolos vêm os bailes em sociedades de paredes de branco caiadas, de acordeão de som limpinho e sapatos a roçar sapatos, barrigas a encostar a barrigas, num vai e vem infinito de notas de música e promessas sussurradas ao ouvido.
  Com os bolos vem o copo de licor quente, de poejo, de ginja,de tudo, a aguardente (a água ardente), o vinho do Porto de outras paragens é certo, mas que aqui assenta tão bem. Com os bolos vem esta vontade que seja tudo mais doce. Vem a revolta quando não os há, que a vida não se fez só para trabalhar antes mesmo que o sol se levante e continuando muito depois que ele desapareça.
  O diabo dos bolos apetecem sempre, mesmo quando o café se acabou na chocolateira junto ao lar e lá dentro só sobrar o resquício da brasa apagada. Com os bolos entram na gente as ideias que adoçam como o mel mas que trazem nelas um travo a vida real, como o limão. E nascendo e morrendo tantas vezes, os bolos vão deixando as suas migalhas, a vontade de provar mais, o direito de ter melhor.
  Porque tanto bolo se amassou, que no corpo o diabo entrou.